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A pele que habito

Atualizado: 17 de dez de 2022

A abordagem desta edição é tão somente sobre examinar os termos construir e habitar. Ainda que essa relação não seja necessariamente direta, ela está intrinsecamente ligada. A origem da palavra habitar, em português, vem do latino habitar; e hábito tem como matriz formadora a palavra latina habitus. O termo habitar significa: morar, povoar, residir. Ela une todas essas. Fui pesquisar e descobri um senhor filósofo alemão, Martin Heidegger. Aliás, preciso ressaltar: considerado e reconhecido como um dos filósofos mais originais e importantes do século XX. Esse senhor disse:

“[…] primeiro eu não 'sou' 'eu', no sentido do próprio si mesmo, senão que sou os outros a maneira do 'a gente' (Man). Desde este e como este estou dado imediatamente a mim mesmo. Imediatamente, o Dasein é o 'a gente', e regularmente se mantém nisso. Quando o Dasein descobre e aproxima para si o mundo, quando abre para si mesmo o seu próprio modo de ser, este descobrimento do 'mundo' e esta abertura do Dasein sempre se levam a cabo como um afastar de encobrimentos e obscurecimentos, e como uma quebra das dissimulações com as quais o Dasein se fecha frente a si mesmo.”

Baseada em minhas investigações e pesquisas, percebi que a ideia de habitar está muito ligada — na verdade, profundamente ligada — ao processo de construir e de confiar ou de ter confiança. Portanto, confiar, habitar e construir devem fazer parte de um único combo quando o assunto é habitar. Essas articulações dão subsídios para uma edificação de alicerces firmes, fortes. Uma base sólida deve ser edificada quando se trata de construir e habitar. Para Heidegger, o Dasein é sempre relação com o próprio ser, cuja característica é chamada de existenciais. Em ser e tempo, o Dasein é descrito em sua cotidianidade como ser-aí-no-mundo que existe, já sempre se projetando em possibilidades de ser, as quais são constituintes do seu jeito próprio de ser. Complexo? Não, um pouco. Viver, morar, está relacionado a HABITAR, possuir, ter, manter. Naturalmente, habitação também deriva daí.

Não podemos banalizar o “hábito” de usar ou de agir sempre de certo modo e continuar repetindo esse hábito de forma a tentar convencer o outro de que ele é habitual. Deu para entender? Nada….? Um pouco, vai. Enfim, filosofando por aqui e inspirada no senhor alemão citado acima. A pele que habito é minha por condição, característica e alicerce firmes. Construída e embasada em experiências vividas de forma quase natural com garantia de troncos e barrancos. Muito mais barrancos que trancos. Não é uma inclinação por alguma ação ou disposição de agir. É a pele que eu habito. Construída a duras penas. E não consigo me despir quando for incômoda ou causar mal-estar a quem quer que seja. É a pele que eu habito. É a forma habitual, cotidiana, que uso para conduzir a minha vida. E, diga-se em elegante francês, en passant, nada fácil. Nessa condição, vou levando da maneira mais “normal”, “relativa”, e vivendo na pele que habito as violências e experiências mais adversas que um ser pode conseguir suportar. Lembrando que este “ser” tenta (às vezes), com muita elegância, circular discretamente. Impossível, em meu caso. Mas tenta circular com elegância e descrição em nossa sociedade, cheias de seus dogmas e de machismo. Passo, com muita frequência, de vítima a agressora. Não vejo como solução colaborar com a fantasia do outro e ganhar a sua confiança abastecendo o ego com as suas fantasias de estereótipo pré-determinadas. Recuso-me, senhoras e senhores, a contribuir com a adequação para ser aceita.

Daí euzinha não me vejo compactuando e, o pior, em performance de gênero, simulando também manter sentimentos amorosos pelos homens e mulheres que insistem em arruinar a minha existência. E tornar, a cada dia, essa existência mais e mais difícil. A estratégia de fuga é a minha sobrevivência, algo que afirmo a mim mesma todos e todos os dias. Às vezes, várias e várias vezes, no decorrer deste mesmo dia. A minha nunca se alterou. Nunca percebi qualquer alteração nela, na minha identidade, mesmo quando cruzo com minha mãe e/ou minhas irmãs. Nada alterou. Sim, senhoras e senhores. Minha mãe, meus irmãos e principalmente minhas irmãs odeiam o fato de olharem em meus olhos e não reconhecerem neles a pessoa que já fui. Para mim, nada se alterou; porém, para elas, sim, a mudança é absurda. Insisto incansavelmente que a minha identidade está intacta, que nada foi alterado. Sublinho a narrativa de que a identidade de gênero de um indivíduo não se prende necessariamente à aparência de seu corpo ou ao seu comportamento, mas sim à forma como se reconhece. Apesar de todos os obstáculos, a criação desta pele que habito, todos dias, relembra que ainda, ufa por isso, tem a sua existência e que esta continua vivendo, habitando. E continuará a habitar em mim.

O meu corpo, antigamente, era uma prisão dentro de uma outra prisão. Sofria sempre com a necessidade de TRANSformação. Além das físicas, que sempre desejei e com as quais sempre sonhei, esperei longos e eternos trinta anos para ser chamada de ela e pelo meu a Jogê. Um pronome e um artigo. Simples assim. Deste modo, a pele que habito passa a representar uma libertação sem classificação cronológica; sem qualquer esclarecimento de uma ciência de divisão do tempo, ou data, ou qualquer convenção estabelecida. Enfim, sou ela, a Jogê. De modo geral e até filosófico, esse processo corresponde à libertação da alma e do corpo de tudo aquilo que “era” estranho à minha essência e à minha natureza.

Literalmente, aquilo me perturbava, até corrompia. Não havia prazer em ser aquela pessoa. Isso lá era vida? A alma se retirava das atividades, todas elas. Não havia paixão. Não havia emoção. Não nasci para viver amores ou paixões platônicas. Gosto do real e o admiro. Sempre e sempre digo: “Se não for para ser passional, não saio da cama”. Não me vejo renunciando aos meus desejos, minhas paixões, meus amores. Juro, preferiria a morte. Por isso, escolhi viver. E amo a vida e cada tantinho assim dela. Adoro viver, viver é ótimo.

A minha TRANSformação foi uma tentativa desesperada de ser e continuar feliz. Recuso-me a ser infeliz. Fiz a opção, ou melhor, preferir reescrever a minha história de forma muito mais charmosa, cheia de curvas, sem qualquer tendência a ser blasé. Sou um ser único, de nome único, de alma única. Um indivíduo que se recusa a ser indiferente a tudo, se recusa a ser enfastiado, se recusa a ser entediado. Em nada o meu comportamento revela indiferença.

Quando descobri o Dasein, mesmo sem ter a menor ideia de que ele existia, afastei qualquer possibilidade de encobrir e obscurecer essa essência. Abri para mim mesma o meu próprio modo de ser. E viva Martin Heidegger.

Todavia, o homem está disposto a punir. A desumanização passa a ser encarada como objeto para fins de reparação e castigo. Sou submetida a situações dolorosas, desagradáveis, nas quais as pessoas têm obrigação de impor em nome dos científicos, religiosos, filosóficos, culturais, sociais. Essa é a punição. É uma estratégia de fuga dessas pessoas que insistem em se incomodar com a felicidade alheia. E, como dizia o poeta, carioca, nascido em berço esplêndido da música popular brasileira… eu vou sobrevivendo sem nenhum aranhão.

Viver nesta pele que habito é sensacional. Resumindo: viver? É absolutamente ótimo.

Jogê Pinheiro para a coluna Espartilho Trans

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