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“Beijo do gordo”

Atualizado: 18 de fev de 2023

Em 16 de dezembro de 2016, o Brasil dava adeus a uma das despedidas mais famosas da televisão brasileira: “Beijo do gordo”.

Lembro-me de gostar de assistir ao programa mesmo quando a idade era pouca para compreender as temáticas abordadas. O Jô foi uma das primeiras – talvez A primeira – pessoa gorda bem sucedida que eu via na TV. Na minha cabeça era insano ele se autointitular de gordo e pronunciá-lo com tanta irreverência e felicidade, enquanto eu era 90% do tempo ocupada por idéias de como deixar de ser gorda.

Em 2014 o apresentador afirmou usar o humor como uma forma de ser diferente, para que o ser gordo não fosse o que o diferenciava. Isso me fez pensar muito na forma como me vi – e me viram – ao longo da vida. Na infância fui a criança gordinha; na escola eu era a garota gorda; na faculdade fui a atriz gorda; quando publiquei meu primeiro livro me tornei a escritora gorda.

E vejam bem, me entender como uma mulher gorda foi totalmente libertador e poderoso para mim. Usar a palavra gorda sem medo dela foi um processo muito importante na minha vida. Mas não era apenas por isso que eu queria ser reconhecida.

Eu poderia ter sido reconhecida como a criança criativa, a aluna rebelde, a atriz visceral ou a escritora sensível. Mas se gorda sempre ofuscou todo o resto. Não só em relação a minha pessoa, mas também sobre como me enxergavam. Já perdi a conta de quantas vezes fui o que chamo de “gorda ponto de referência”.

“Onde é o final da fila?”

“Atrás da garota gorda.”

“Onde fica a farmácia?”

“Ali onde a gorda acabou de entrar.”

Muitas pessoas tentam – e falham – ser mais gentis e usam o diminutivo: “atrás da gordinha”, “depois da gordinha”.

Eu não sei se isso se aplica a todos, mas Jô Soares foi uma dessas figuras extraordinárias que conseguiu ultrapassar o rótulo de gordo. Comunicativo, bem humorado, sensível e generoso, ele deixou  uma contribuição incalculável para a mídia brasileira. Ainda assim, tenho certeza que esse deve ter sido um caminho de altos e baixos.

Lembro-me vagamente de ouvir questionamentos espantados sobre como era possível uma mulher como a Claudia Raia namorar com ele. E eu entendo o espanto. Em plena década de 80 o único lugar ocupado pelos corpos como o dele e o meu era o da chacota. Ora, que absurdo era pensar numa pessoa gorda sendo amada e desejada.

Pelos cantos, as pessoas cochichavam que “devia haver outro motivo”. Afirmavam com uma convicção assustadora que ela estava interessada nas oportunidades que ele poderia lhe dar.

Como mulher gorda que entende sua existência como política e que trabalha diretamente com a arte – das palavras – sou grata ao Jô Soares pelo simples fato de existir e ser ele mesmo; por me mostrar um caminho que antes eu nem sabia ser possível.

Obrigada, Jô. Descanse em paz e um beijo dessa gorda que agora não tem medo de dizê-lo em alto e bom som.

Thati Machado para a coluna Gorda, sim!

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