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Cadernos e uma vida cheia de perguntas

Atualizado: 5 de set de 2022

Lembro de quando era adolescente e recebia aqueles cadernos com várias perguntas para responder. Não sei se ainda existe isso, mas basicamente a ideia era que cada pessoa na sala de aula respondesse o caderno da coleguinha e, em alguns casos, ela também respondia o seu. 

A maioria das perguntas giravam em torno de gostos pessoais, desde sua cor favorita até se gostava de alguém na turma. Alguns eram mais apimentados do que outros, afinal éramos adolescentes. Ainda assim, a maior parte deles tinham perguntas simples já que para romper o “sigilo da identidade” bastava pegar o caderno emprestado de um colega para checar se a caligrafia correspondia. 

Com o tempo acabaram os cadernos, as caligrafias diferentes, as canetas coloridas e os desenhos divertidos. Porém permaneceram as dúvidas. Vozes. Por vezes internas, outras externas.

Do que você tem medo? Qual é o seu sonho? Será que vai viver muito tempo? Por que isso aconteceu com você? O que você quer fazer na vida? Será que consegue trabalhar?

As pessoas costumam ser curiosas demais quando veem alguém com deficiência, sabe? Às vezes são dúvidas sinceras, no desejo de oferecer ajuda ou entender melhor a causa anticapacitista. Porém, existem pessoas que extrapolam os limites e, infelizmente, não são poucas as que fazem isso.

Perguntas do tipo “como você dorme?” até “como você consegue fazer sexo?” são distribuídas não apenas nas redes sociais digitais, mas também em espaços físicos públicos ou privados. São situações de desrespeito tão absurdas que, por vezes, poderiam ser esquetes de programas de humor.

Quando falamos de deficiência como marcador social, nos referimos a sua influência em diferentes setores da vida de uma pessoa. Por exemplo, a ausência de acessibilidade para cadeirantes não só prejudica meu acesso a diferentes espaços sociais, como também impede minha socialização com amigos, familiares e demais. Tal isolamento pode impactar a autoestima, desenvolvimento pessoal e mental. 

“São situações de desrespeito tão absurdas que, por vezes, poderiam ser esquetes de programas de humor.“

Tá vendo como as coisas vão se encaixando? É esse processo que costumamos nomear de estrutura. Um conjunto de relações que vão se organizando aqui e ali sendo impactadas (ou não) por diferentes marcadores. Para entender isso, as feministas negras pensaram em um conceito chamado interseccionalidade, ou seja, um modo de observar como diferentes opressões se fazem presente na vida das mulheres ao mesmo tempo.

Ficou complicado? Veja só, no meu caso, ser mulher com deficiência trouxe diferentes experiências para minha vida. Primeiro, por ser mulher e lidar com todas as expectativas sociais em torno disso. Segundo, por ser alguém com deficiência em uma sociedade que não promove um ambiente seguro e acessível para pessoas iguais a mim. 

É como se a capa do meu caderno já viesse indicando o capacitismo e machismo que viriam na maioria das perguntas que me são dirigidas. Claro que nem sempre o preconceito é genuíno, quero dizer, há pessoas que agem de forma preconceituosa por desconhecimento ou falta de informação verdadeira. Em tempos de fake news existem muitas mentiras sobre viver com deficiência sendo espalhadas por aí. 

É um processo bem complicado, não apenas por envolver uma rede de imaginários que foi construída historicamente, mas por que precisamos lidar com pessoas o qual podem estar, ou não, receptivas para ouvir o que nós temos a dizer.

Com o tempo você aprende a impor seus limites. Por mais que não tenha controle das perguntas que serão feitas, pode determinar a quem deseja entregar as respostas. Da mesma forma que escolhíamos a quem entregar nossos cadernos, também podemos selecionar a quem iremos nos abrir. Pessoas com deficiência tem direito a privacidade, tanto quanto qualquer outra pessoa sem deficiência, por isso peço: respeitem nossa intimidade.

Fatine Oliveira para a coluna Corpos sem filtro

Encontre-a no Instagram @fatine.oliveira