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Filhos, optei por tê-los?

Atualizado: 17 de jan de 2023

A maternidade em minha vida sempre, ou melhor, desde sempre esteve explícita em mim. Era tão normal e natural que nunca pensei como seria quando chegasse o momento. Era algo tão presente e com tamanha importância que nunca imaginei que teria qualquer dificuldade em me assumir mãe.  Este desejo habitava o íntimo do meu ser.  Ter filho era de fundamental importância. Era uma complementação. Era a minha pós-graduação na vida. A vontade era tamanha, que gerou em mim um sentimento de egoísmo. Não era pedantismo, vaidade, era amor. Não perguntei ao meu marido se ele queria ter filho. O que importava era: Eu queria. A minha preocupação quando criança, sim senhores e senhoras… Eu sempre tive este desejo em mim.

Quando criança e adolescente a preocupação era: “Como se dará?” O que acontecerá quando crescer e resolver que estou pronta?… “Bem cresci e agora?” Aí senhoras e senhores a porca torce o rabo e o bico.  Porque o buraco é muito mais lá em cima. Todas as portas são lacradas. As pessoas que você imagina estar ali para lhe garantir o acesso, fazer a “justiça”, facilitar o trajeto, são essas as que mais lhe julgam e negam este simples direito de sonhar. Ouvi arbitrariedades chocantes, estarrecedoras de assistentes sociais, advogados, juiz, amigos, família. Coisas do tipo: “Porra! essa criança não terá uma “BOA referência”. Isso dito por um juiz. Uma assistente social em uma das milhares de vezes em que insistia na adoção, rompeu o seu silêncio e preconceito e bradou a plenos pulmões e para quem quisesse ouvir: “… Ah filhinho! Para… vai para a escola de samba…”Pois é senhoras e senhores a maioria das pessoas imaginam que todo veado é circo, hospício ou no mínimo é do samba. Isso para poupá-los de outros exemplos mais dolorosos e rasos.

Não esquecendo de lembrá-los, que nesta época eu ainda não era transexual assumida. Tinha uma relação estável, já casada. Professora de ginastica e dança, e trabalhava em uma instituição de respeito dentro neste nosso país, vinda de família com papai e mamãe dentro dos padrões estabelecidos por nossa sociedade.

Porém, e ainda bem, nem sempre tudo é resumido em pantomima, escárnio e embuste. A partir de agora esta estrutura textual será organizada em linhas e parágrafos com caraterísticas marcantes desta escritora, sem versos nem prosas, mas cheio de poesia.

“E nos vemos em um abismo de abstinência de amor. Tanto que transbordando, sem poder inundar outros seres, pois somos impedidos de agraciar com amor”. Maya Durães.

Maya Durães, ariana nata com ascendente em estrela cadente, precisa de brilho. Nasceu na cidade de Diadema, em um dia de abril, no grande ABCe D de São Paulo quis o destino que tal nascimento fosse no Hospital da Mulher de Diadema. Formada em educação física, trabalha como personal. Casada há dois anos com Bruno. Recém-integrantes da sociedade Natalense ou Potiguar. Esta ariana, de pele morena agora bronzeada, graças ao sol da capital do Rio Grande do Norte.  Alta, corpo escultural, trabalhado nos exercícios diários de agachamentos e corridinhas despretensiosas nas praias de Natal. Cabelos crespos e jogados aos ventos com brisa marítima vindas do Norte, é mãe de duas crianças. Ítalo de onze anos, recém-completados e a Iris, uma bebê cheia de malemolência e charme próprio de três aninhos. O primeiro tem um leve retardo mental diagnosticado. Exigindo muito mais dedicação do casal, que no começo desde ano trocaram Diadema, em São Paulo, por Natal no Rio Grande do Norte, em busca de qualidade de vida e tranquilidade para criar os filhos. Quando se conheceram Bruno e Maya era um casal de namorados gay.  Não conseguindo se encaixar nos padrões enquanto gay, Maya, acaba cedendo a um desejo de adequação e a vontade desde sempre ali presente e transaciona para a transexualidade. Tarefa árdua que dividiu com o marido e seu amor, que de bate pronto abraçou literalmente a causa e disse: “É Isso. Você agora é Maya e pronto”. Deu todos os caminhos e possibilidades para surgir a Maya. Apreensiva com a possibilidade de que “talvez” a sua “mudança” pudesse acabar com o relacionamento ficou surpresa com as atitudes do marido. E dos filhos, que a cada chamado “MÃE!” Enche de orgulho aquela que como esta, desde sempre, mesmo bem antes de imaginar em tal possibilidade, comprou um presente para o seu primeiro filho. Como nem só de orgulho conseguimos viver. A família da Maya, a mãe e uma irmã lésbica, não aceitaram a mudança.Sim vocês leram certíssimo. A irmã lésbica da Maya, não aceita a sua transição. E em dias atuais fazem questão de chamá-la pelo nome do falecido.

Ainda dentro do assunto maternidade/paternidade, Maya nunca conheceu o pai biológico. Foi criada pela mãe. Á pouquíssimo tempo, conseguiu com a ajuda de seu marido, Bruno, encontrar a família do seu pai. Assunto para uma outra matéria.  Bom assunto.

No começo do processo da adoção da íris, segunda filha do casal, houve um certo mal-estar com relação a possibilidade da assistente social, descobri que Maya, agora era uma mulher e este fato bloquear ou impedir de alguma forma a adoção já caminhando a passos largos, inclusive da Iris vivendo com eles. Esconderam o fato da mudança, até tudo ser resolvido, deferido e protocolado. Preconceito? Não, imagina. Aqui faço uso de palavras que são ao contrário do que realmente quero dizer.

“A maternidade com toda sua complexidade, trouxe ao meu lar e ao meu relacionamento uma ternura que jamais imaginaria”. Bruno Fernandes.

“A maternidade em minha vida sempre, ou melhor, desde sempre esteve explícita em mim.”

Bruno Fernandes é um daqueles caras que não pode ser observado. Quando observado a impressão é de que o cara age como se ligado em 400 volts. Faz trezentas coisas ao mesmo tempo. Fala pelos cotovelos, joelhos e braços. Gosta de ser útil sem a necessidade de ter qualquer recompensa monetária. Age com… digamos certa maestria quando o assunto é filantropia. Faz o bem, tira do bolso envolve amigos, família, funcionários e segue o seu caminho sem aguardar ou esperar qualquer reconhecimento. Vegetariano tranquilo, sem radicalismo, ou muito menos carnivorismo. Alto, branco, dono de um par de olhos belos e verdes, ou verdes e belos. Sujeito porreta, de oratória fantástica e profissional da beleza, respeitado e consagrado na área. Sem qualquer sentimento de incerteza ou dúvida a respeito de quem está com a verdade, assume que hoje deixou de viver uma relação homo para viver uma relação hétero. Cautela somente quando o bem-estar, segurança e felicidade dos filhos e da esposa está em jogo. Artista nato, criativo, olhar clínico para as situações em ação do momento presente, tendências ou mentalidade do presente. Preocupação de não ser extemporâneo, não ultrapassado. Descreve a relação de sua família estruturada como poesia. “… Mesmo com todas as equações sendo re-contabilizadas, toda essa troca, nos trouxe uma grande poesia, e nossos filhos sempre nos enxergaram para além do gênero”.

O casal confidencia, que sim o preconceito é marcado de forma veemente e impiedoso por todas as partes e ambientes, porém para a soma total o resultado é fantástico, não tem preço. Maya adiou a sua transição por um longo período mesmo ansiando por esta mudança, com receio das arbitrariedades que poderiam sofrer no decorrer do processo de adoção da Iris, sua segunda filha. Chegando a um ponto triste, de ter que se fantasiar de uma figura masculina escondendo a Maya em algumas visitas técnicas e entrevistas.

Bruno acredita que a figura feminina da Maya ajudou na composição deste quadro “Luterano”. Esta construção mútua foi importante para o casal mais principalmente para a Maya, enquanto mulher e mãe. E de forma tão significativa, que nos primeiros dias de convívio com a filha, seus seios brotam leite.

A parte tranquila do processo de adoção da segunda filha, foi um fato curioso, olha o absurdo. A mim causa espanto. A assistente social designada para acompanhar o processo desta família, agiu de forma “normal” quando foi percebendo a mudança da Maya. Segundo o Bruno, imediatamente começou a tratá-la no pronome certo, uma pessoa de mente evoluída, preparada para lhe dar com assuntos diversos e com a diversidade de assuntos. Atenta para os detalhes. No final do processo elogiou o casal e disse sentir lisonjeada, teve como privilégio poder acompanhar e conviver com o sucesso daquela família. Já havia feito inúmeros acompanhamentos de casal homo, mas, um casal onde a mãe é transexual foi o primeiro. Esta pessoa entendeu que essas crianças tinham uma mãe.

Bruno, Maya, Iris, hoje, 1º de março, carnaval, se reúnem na casa da mãe do Bruno para comemorar o décimo primeiro aniversário do Ítalo. Presentes? Além do dom da vida, amor, os novos amigos, toda a família potiguar com algumas e infelizmente necessárias preocupações: festa ao ar livre, distanciamento e máscara.

O que existe de fato e efetivo na vida dessas pessoas é um sentimento de respeito à verdade.

Jogê Pinheiro para as colunas Espartilho Trans e Maternidade