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Meu Super-herói é Gay

Atualizado: 17 de mai de 2023

Setembro, quase alcançando a primavera. O ano é 2019. A cidade, Rio de Janeiro, em uma manhã quase tarde para atitudes antidemocráticas e cedo para uma decisão, digamos, peculiar. Aquela que carece de naturalidade por resultar de mera convenção.

Um grupo de senhores cumpridores da lei, fiscais da prefeitura do Rio de Janeiro, sob a batuta do então prefeito da cidade, chegam à Bienal do Livro e são recebidos a gritos e vaias de um público, uma plateia seleta presente na Bienal.

Seguem em caçada voraz dos exemplares da novela gráfica Vingadores: a cruzada das crianças, edição especial da Marvel, criticada por ter em suas páginas coloridas e muito bem traçadas e diagramadas um beijo gay entre dois super-heróis.

"A ação do prefeito causou efeito rebote: começou uma verdadeira disputa pelos exemplares da tal HQ, que teve todos os seus exemplares vendidos em minutos."

Como diria a minha sábia vózinha: “Minha filha! O tiro saiu pela culatra”. Todos – eu disse TODOS – os exemplares foram vendidos em trinta e nove minutos. Os tais fiscais da prefeitura, ao serem interpelados por alguns curiosos que desejavam entender o motivo da presença daqueles senhores ali na Bienal, responderam: “Encontrar e recolher material pornográfico”. Segundo o então prefeito, o desenho no interior da HQ que retrata dois personagens se beijando, completamente vestidos, era pornográfico.

"Precisamos exercer a prática de aprender, respeitar e acreditar nas mudanças."

A prefeitura do Rio de Janeiro determinou que a organização da Bienal recolhesse o material pornográfico; que este deveria ser embalado em plástico preto e lacrado com aviso de seu conteúdo.

A ação do prefeito causou efeito rebote: começou uma verdadeira disputa pelos exemplares da tal HQ, que teve todos os seus exemplares vendidos em minutos. Felipe Neto, YouTuber, comprou algumas centenas de exemplares com temas LGBT+ e distribuiu gratuitamente para o público da Bienal.

"Não consigo entender, mesmo fazendo muita força sobre-humana, como que o fato de o filho do Super-Homem ter dado um beijo em outro rapaz em uma história em quadrinhos pode e deve afetar a minha vida ou a de qualquer outra pessoa? O novo Super-Homem é bissexual, e daí? "

Hoje, em frente ao RioCentro, onde é realizada a Bienal do Livro na cidade do Rio Janeiro, existe um desenho com metros de altura de dois rapazes em beijo apaixonado. A gravura, criada pelo artista Johncito, é capa de O primeiro beijo de Romeu, livro de Felipe Cabral. O PublishNews, site especializado em vendas de livros, disse que o romance gay Vermelho, branco e sangue azul, da editora Seguinte, foi o maior sucesso do gênero no ano de 2021, com cerca de 47 mil exemplares vendidos. Se bem que… É obvio que a maioria, SE não todos os livros e as publicações do gênero, não trazem em suas capas e resumos o assunto a ser dissertado em seu interior.

… E disse Sidarta Gautama, Buda: “O mundo está em constante mudança, por isso, não se apegue a nada”.

Precisamos exercer a prática de aprender, respeitar e acreditar nas mudanças. Estas, por mais que nos pareçam “estranhas”, são a única constante. A vida é uma constante, meus caros, e uma eterna mudança.

Precisamos perceber; enxergar o outro, a pessoa, o mundo, que também está em mudança constante. Absolutamente nada, até ele, o mundo, não é imune a isso, à mudança. E a nós, seres pensantes, resta acreditar que essa mudança é para melhor, sem sombra de dúvidas. Mesmo que dentro de nós ainda insista um medo, isso eu chamo de “medo a rejeição à mudança”. A vida é uma intensa provocação.

Dizer nunca para a vida não adianta, pois a danada não reconhece; para ela, a vida, somos capazes de tudo. Às vezes, aqui uma opinião pessoal, o cotidiano me cansa. Porém, mesmo pensando assim, não canso de admirar um céu lindo, o azul do mar, as crianças correndo ao ar livre. Quem disse que não podemos ser felizes com essas pequenas coisas? Tento insistentemente transformar a minha vida em uma eterna primavera.

Não consigo entender, mesmo fazendo muita força sobre-humana, como que o fato de o filho do Super-Homem ter dado um beijo em outro rapaz em uma história em quadrinhos pode e deve afetar a minha vida ou a de qualquer outra pessoa? O novo Super-Homem é bissexual, e daí? Deixa o cara ser feliz e beijar quem ele quiser. Fato é que toda essa preocupação esconde a falta de o assunto não ser discutido.

O assunto, na realidade, nem sequer pode ser abordado, inclusive nas HQ e nos seus personagens. Existe uma censura velada e ataques à liberdade. Afinal, somos e temos liberdade para isso? Não! Tal ato é considerado, até hoje, “ato de sodomia”. Até pouco tempo atrás, era considerado crime e punido até com pena de morte. Sim, senhoras e senhores, em alguns países e meios, é pena de morte e ponto. Porém, o amor venceu, e precisou o filho do cara que é super, que não é deste planeta, nascer para revolucionar o mundo dos HQs. Somos preconceituosos, e qualquer ato preconceituoso não é humano.

A Marvel Comics e a DC Comics criaram vários personagens gays, bissexuais e transgêneros, mas devo afirmar que ainda a representatividade não é significativa, pois até ali dentro de suas páginas os nossos super-heróis se escondem em seus superarmários.

Christian Gonzatti, o cara é doutor em comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, uma universidade jesuíta na cidade de São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre. O rapaz é dono do perfil “Diversidade Nerd”, lançou o livro Pode um LGBTQIAP+ ser super-herói no Brasil?, da editora Devires. Enfim, afirma o rapaz: “Ignorar o peso da cultura pop no debate público é um erro”. Em seu livro, Gozatti fala de como a extrema direita tem tentado se apropriar da cultura geek – games, filmes de fantasia e de ficção cientifica, quadrinhos ­­– e de como essas obras se tornaram parte das guerras culturais e das disputas dessas narrativas.

Sinceramente? Acredito que até se fala no assunto de incluir, inserir, discutir a tal “representatividade”, porém, ainda assim, ela continua invisível. Diga-se das pessoas excluídas, todas elas: das pessoas com deficiência física, sem acesso adequado; dos pretos; dos pobres; das pessoas com nanismo; dos albinos… Basta ser ou ter diferença. Como disse o Buda, não se apague diante das mudanças, e acrescento: não se negue a possibilidade de mudanças.

Jogê Pinheiro para a coluna Espartilho Trans

Encontre-a no Instagram @jogepinheiro