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O Ponto do Papai

Atualizado: 15 de jan de 2023

Mais um e acho que esse será longo, mas o final de uma trilogia de alertas quanto a violência contra gestantes. Hoje, finalmente, falaremos de violência obstétrica no real da coisa. E eu tenho situações que até hoje me fazem pensar muito na loucura que é escolher engravidar e passar por tudo isso para ter uma criança em seus braços.

Quando tive meu segundo filho, após o parto, aliviada, ainda com medo, mas sedada e exausta, me levaram para a sala de observação, que nada mais era do que uma pequena sala ao lado da qual deixavam as mulheres que estavam em trabalho de parto. Lembro que queria dormir porque seriam quatro horas de nada até que alguém me levasse até o quarto e me entregassem o meu filho. Fiquei sozinha, ouvindo os gritos das mulheres e as reclamações de alguns funcionários. Ouvia lamentos, choros, desesperos. Depois me contaram que é assim em todos os hospitais, porque parto normal dói de verdade, e, por favor, não se assustem, rendem choro e ranger de dentes. Trágico e bíblico, nada melhor para fazer alguém temer.

Então eu estava lá e ouvi uma mulher chorando. Ela pedia a enfermeira para chamar o médico dela e avisar que não queria normal, queria cesárea, porque não aguentava de dor, e ao invés de atendê-la, a enfermeira, provavelmente, e digo isso porque eu só ouvia, estava só no meio de umas quatro mulheres em trabalho de parto, abriu a porta e gritou para outra enfermeira correr e ajudá-la porque uma das parturientes havia “defecado” no esforço e a criança estava “coroada”. Não sei se vocês entenderam a situação: uma paciente desistiu do parto normal, mas a enfermeira não conseguiu ajudar porque deixaram a outra paciente em trabalho de parto, eu posso dizer que por quase quatro horas, com uma criança com a cabeça saindo, se espremendo ao ponto de não conter o intestino e colocar em risco todo o trabalho de 41 semanas.

Foram duas mulheres prejudicadas nesta situação; Uma que estava em seu direito de desistir, tanto que eu saí da sala de observação e ela ainda aguardava o parto e a outra que poderia morrer de infecção ou ter o filho tirado dos seus braços por algo parecido. Irresponsabilidade? Provavelmente. Mas não me sai da minha cabeça a maneira como ambas foram tratadas para que se calassem e deixassem a equipe trabalhar. A maneira estressada como a enfermeira solitária grunhia que para fazer não doía.

Na época eu fechei os olhos e pensei: ninguém me diria algo parecido sem consequências. Mas a verdade é que dizem sim e esse assunto é importante para você, que está frágil, prestes a ter seu filho e que dificilmente reagirá quando acontecer, porque ainda nos dizem que é normal, que hospital público é assim, que você entendeu errado… e assim vão nos calando porque não temos direto de sentir dor na hora do parto, ou de engordar na gestação, ou de desistir de algo que nos dá medo, ou de “escolher” o parto normal para ter o famoso “ponto do papai” e o marido ficar mais satisfeito.

Então, deixe-me contar sobre o meu segundo parto: Escolhi cesárea, como já relatei; Cheguei no hospital as sete da manhã e fiquei na recepção até às 16h sem nenhuma explicação. Quando eu disse que desistiria, porque estava com fome e sede (pense em sentir fome e sede estando com 41 semanas de gravidez!), eles me internaram e deixaram no soro até às 22h. Quando cheguei no centro cirúrgico estava uma confusão. As duas mães que entraram antes de mim perderam as suas crianças. A equipe médica estava desesperada.

“Não somos mulheres que escolheram ser mães, somos um corpo que precisa estar perfeito após um parto porque o “papai” estará sarado, somos uma vagina que precisa estar apertada para satisfazer o companheiro, somos seios que não podem amamentar para não ficarem flácidos, somos seres que não podem chorar nem reclamar de dor.”

A assistente social chamou a irmã de uma delas e deu a notícia na frente das que ainda teriam os seus filhos. Ouvimos o choro da tia e da mãe e foi tão triste que até hoje quando comemoro o aniversário do meu filho, lembro delas. Na sala de observação não podia ter acompanhante. A mulher que havia acabado de perder o filho, não parava de chorar, com toda razão, mas eu estava ali e com muito medo de acontecer comigo alguma coisa de errado como aconteceu com elas. A irmã conseguiu entrar e ficar com ela, mas a enfermeira, de uma forma rude, disse: “não pode ter acompanhante. Nenhuma delas tem, não é justo.”

Pensem como isso soou naquele momento. Que situação horrível ouvir a enfermeira dizer a uma mãe que teve seu filho arrancado dos seus braços, que ela não poderia ser consolada porque não seria justo com as outras que estavam lá com os seus filhos. Olhei para os lados e ninguém disse nada e pensei: como podem aceitar isso? Mas tive tanto medo que me calei. Aquela mãe entrou na maternidade no mesmo horário que eu, queria parto normal, estava em trabalho de parto, mas às 22h algo aconteceu e ela perdeu o bebê. Meu medo me calou e até hoje me culpo por isso.

Quando chegou a minha hora eu entrei orando. A equipe estava perdida e tão atrasada que pareciam quererem se livrar logo de mim. A anestesia foi dada de uma vez só, minhas pernas sumiram e como resposta minha barriga pesou, meus pulmões não tinham espaço para eu respirar e minhas costas pareciam que partiriam no meio. Eu avisei, muitas e muitas vezes que doía demais, mas ninguém me ouviu, eles queriam abrir minha barriga e tirar o meu filho para aliviar a barra de dois partos ruins. Foram minutos que pareciam horas. Não vi meu filho nascer porque a dor não me deixava focar a atenção.

Mas quando acabou eu só pensava que estava tudo bem e que eu voltaria para casa com meu filho nos braços. Nunca questionei, nunca fui lá reclamar ou alertar sobre esses problemas.

Há seis anos, violência obstétrica era a enfermeira mandar você não gritar e eles não me falaram isso, eles sequer falaram comigo. Não me olharam uma única vez em minha queixa de dor. Entrei para a lista das que sofreram violência obstétrica.

Vocês conseguem entender como cada detalhe dessa história que deveria ser linda é destruído em atos sutis? Vocês conseguem enxergar que desde o primeiro momento, o “positivo” em uma folha de papel, nossas escolhas são questionadas e levadas para satisfazer a todos menos a nós mesmas? Conseguem chegar no ponto em que a mulher nua, em uma sala com estranhos, com dor ou sem, tem sua alma rasgada com frases do tipo: “na hora de fazer não chorou”? Ou “se tiver normal eu dou aquele ponto extra para apertar”, como se voltar a ser virgem fosse de fato nosso maior problema após ter um filho…

Todos esses pontos arrancam de nós a nossa humanidade. Não somos mulheres que escolheram ser mães, somos um corpo que precisa estar perfeito após um parto porque o “papai” estará sarado, somos uma vagina que precisa estar apertada para satisfazer o companheiro, somos seios que não podem amamentar para não ficarem flácidos, somos seres que não podem chorar nem reclamar de dor, somos uma estrutura em ruínas porque nosso psicológico está tão em frangalhos que destruímos tudo: o corpo, o casamento, o momento.

Em que momento entra a beleza que nos prometeram? Como o sol que entra por nossas janelas vai brilhar como nos livros e você vai sorrir e se sentir completa ao olhar para o seu filho quando sua cabeça precisa lidar com tantos machucados?

E ainda assim, quando nos perguntarem “como foi?” Teremos que responder: “lindo.” Porque é isso o que fazem com a gente. Entramos na maternidade instruídas a não chorar, não exigir, não fazer drama, não se incomodar com os toques desnecessários e constantes, não brigar com a enfermeira, não se desesperar se doer ao ponto de você não segurar as suas necessidades, não se fragilizar se ficar mais de 20 h sem comer e beber aguardando a sua vez. E, definitivamente, não se importar se apertarem a sua barriga, empurrarem, cortarem o seu corpo para “facilitar”, não ouvirem o que você fala. O importante é que seu filho estará nos seus braços, certo? E aquele ponto extra estará lá. Consigo até ver a cara do médico piscando se achando “o cara”…

Enfim, desromantizem o “ponto do papai” e tudo o que fazem para roubar o nosso momento. Falem. Denunciem.

Tatiana Amaral para a coluna Maternidade

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