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Violência sexual na infância

Atualizado: 15 de jan de 2023

Tenho a impressão de que pesei a mão nos meus últimos artigos e pensei em escolher assuntos mais leves e fáceis de digerir; mas ontem, enquanto eu ainda me perguntava o que trazer para essa longa, difícil, tempestuosa e necessária conversa que é o desafio de ser mãe — na real, a verdade nua e crua, sem os floreios e a fantasia romântica pela que podemos, sim, deixar-nos levar em muitos momentos; afinal de contas, ser mãe é uma delícia, ainda que em meio à dor —, relembrei um momento da minha carreira como escritora em que precisei encarar essa realidade: o abuso sexual na infância. 

Então, mamães, teremos gatilhos. Se não estiver preparada para essa conversa, respire e pule a página, mas eu não me sentiria completa se não trouxesse esse assunto para debater com vocês. 

Há alguns anos, iniciei a escrita de um livro que teria uma conotação mais pesada. Minha personagem precisava da essência de alguém que na infância tinha sofrido abuso sexual. Como sempre faço com qualquer assunto que resolvo abordar, estudei a situação, uma vez que não escrevo apenas o que vivencio e, neste caso, eu não tinha nada além da minha própria imaginação. Então conversei com psicólogos e psiquiatras, com policiais; estudei leis e preparei minha base; mas faltava a realidade, o ouvir de quem um dia havia estado nesse lugar.

Confesso que morri de medo. Quem é mulher e não treme ao pensar na violência sexual presente neste mundo? Mas quando você pega esse ponto, que sozinho já é tão agressivo, e o leva para o universo colorido, lindo, seguro e mágico da infância, fica pior. Então coloquei em minhas redes sociais a seguinte mensagem: estou escrevendo sobre violência sexual na infância. Se você passou por isso e quiser me contar para me ajudar a construir a personagem, não utilizarei em minha escrita nada do que for narrado e manterei o seu anonimato. 

Juro que quando coloquei essa mensagem, sem qualquer cunho apelativo, imaginei que duas ou três pessoas me chamariam para conversar e me assustei quando o número fechou em cem. Isso mesmo. Cem mulheres me procuraram para conversar sobre o tema. Mas o pesado nesse número não é a quantidade de pessoas que passaram pelo abuso sexual na infância, até porque sabemos que essa quantidade é quase nada perto da realidade. O que me deixou desolada foi quando amigas, pessoas do meu meio social, mulheres que cresceram comigo e dividiram a sua infância, me contaram o que eu, quando tinha vivido com elas, não havia enxergado. 

Levei um ano para digerir tudo o que ouvi. Enquanto elas narravam, eu me perguntava como nunca tinha percebido. Como os adultos ao nosso redor, as pessoas que teoricamente deveriam nos proteger, também não enxergaram? Lembro que para todas eu fiz a mesma pergunta: você contou para alguém? E a resposta era sempre a mesma: não. E quando eu perguntava por que — afinal de contas, como adultas acreditamos que conseguiríamos fazer isso, certo? Que como mães seríamos capazes de captar os sinais, de nos anteciparmos para impedir —, as respostas circulavam entre “eu não entendia o que estava acontecendo” e “eu não queria criar um problema para a minha família”.

Também me assustei, apesar de saber sobre esta realidade, com a questão de o abusador ser quase sempre alguém próximo demais ou da família; um vizinho, um grande amigo, aquela pessoa de quem nunca desconfiaríamos. 

Escrevi três livros com o que extraí dessas conversas, porém o assunto continuou preso em meus pensamentos durantes todos os anos que se passaram. Apesar de desenvolver um olhar mais afiado, de prestar mais atenção nas minhas crianças e de, após tantos relatos inacreditáveis, abrir essa linha de conversa com eles, eu sabia que o perigo era real; estava na esquina esperando o meu primeiro vacilo, então eu não podia vacilar.

Você tem noção de quanto isso pesa para uma mãe? Tem noção da tonelada de culpa e medo acrescentados às nossas costas porque precisamos impedir isso e, em seguida, em muitos casos, nos perguntar por que não conseguimos impedir? Como se fosse algo sobre o qual tivéssemos poder de escolha. Culpa nossa, mães, não deles. Culpa das crianças, soltas, brincalhonas, fáceis de envolver. Não deles. 

Por isso, depois de tantos anos, o bolo se manteve em minha garganta. Eu sempre me perguntava: o que mais posso fazer com isso? De quantas outras formas eu posso mexer com esse cenário, contar essas histórias e, de alguma maneira, segurar nas mãos dessas pessoas, mães e filhos, perdidos em um mundo que nem sequer deveria existir?

Ontem, enquanto eu gravava um podcast sobre escrita criativa, o assunto voltou e eu narrei essa história. Foi assim que eu soube que esse deveria ser o meu tema. Conversamos sobre nosso corpo, sobre escolher ser mãe, sobre partos, sobre criações, até mesmo sobre suicídio, então precisamos conversar sobre a violência sexual na infância. 

Primeiro de tudo, você que é mãe e me acompanha, que segue meus desabafos, precisa entender que, acontecendo ou não, nunca, em nenhum momento, será culpa sua. Salvo se você pegar seu filho e entregá-lo ao abusador, mas com certeza esse não é o caso, apesar de existirem muitos. Não vamos por esse lado. 

Por que eu levanto a certeza de que não é culpa sua? Porque a primeira coisa que eles fazem é dizer que a mãe deixava a criança solta; que ela trabalhava fora o dia todo e o tio tomava conta; que, como uma vez eu li e fiquei em choque, havia um rodízio de padrastos. Por favor, não se permita acreditar nisso. 

Uma mulher não pode desistir dela como mulher porque a relação com o pai dos seus filhos não deu certo. E se isso fez com que um abusador tivesse acesso a sua casa, a culpa é dele, e não sua. Abusadores estão entre nós, disfarçados de bons moços, de grandes amigos, de pessoas da nossa confiança. Possuem a melhor conversa, são impecáveis às vistas da sociedade. Então se pergunte: se todos apostavam nessas pessoas, porque você seria a errada só porque também apostou? 

E aqui você me pergunta: e o que fazer, então? Apostar neles e deixar nossos filhos em um campo minado? A resposta é: não. O primeiro passo é aprender a separar a sua relação amorosa da sua relação com seus filhos. Ainda que você conviva com o companheiro que assumiu a outra metade do desafio, com o pai ou a mãe da criança, separe. Isso semeará no campo necessário para produzir o caminho que guiará seus filhos para a conversa sem medo. 

Segundo passo: seu filho precisa saber que o corpo dele não pode ser tocado, que determinadas conversas não podem existir, que situações desconfortáveis precisam ser conversadas — e isso até mesmo com quem ele pensa ser de confiança. Ele precisa ter a segurança de que será ouvido, e você, a de que ele identificará o abuso. Essa é a ligação de extrema importância que fará você ter aquela chance que sempre pedimos em nossas orações, de evitar o pior. 

Como mulheres, crescemos em uma sociedade em que o assunto sexo é um tabu, é feio, é arriscado, não é para ser debatido em uma conversa aberta na mesa de bar. Mulheres não falam sobre sexo, logo, não conversam sobre sexo com seus filhos. Mas, mães, entendam uma coisa: falar sobre sexo não é ensinar a fazer sexo. Você nem sequer precisa descrever o que é sexo, mas deixar claro para os seus filhos o que eles precisam identificar como abuso. 

Quando meu filho do meio começou a estudar em período integral, eu tive muito medo. Ele almoçava e tomava banho na escola. Então comecei a ensiná-lo sobre o corpo, sobre quem podia pegar e onde. Também perguntava sempre sobre como os banhos funcionavam, quem cuidava dele na escola e outras conversas que, com jeitinho, podem te levar a identificar a ameaça. 

Quando a criança identifica o abuso, quando aquilo que o outro propõe deixa de ser algo que se encaixa na desculpa “eu não sabia o que estava acontecendo”, fica mais fácil evitar que aconteça. Mas o mais importante do que cada coisa que eu disse aqui: quando a criança sabe que você quer ouvi-la, que acredita nela, que você sabe como agir quando a situação sair do controle, ela não terá medo de “causar um problema na família”, porque ela terá em você a fortaleza de que ela tanto precisa. 

Percebeu a diferença? Então, entre o medo de ter a tal conversa com seu filho e o medo de ter um filho abusado, opte pela conversa. Abra essa porta, mostre a ele esse caminho. 

Dessas cem mulheres que conversaram comigo, todas elas disseram que sexo era assunto proibido em suas casa; que a mãe ou o pai nunca lhes falaram nada sobre o corpo.

Contaram que tinham medo das ameaças, e elas sempre estarão lá, mas seu filho precisa saber que você não tem medo. Essas mulheres, sem qualquer conhecimento de como fugir daquilo, entraram para a estatística horrível que ainda precisamos encarar e da qual só queremos fugir. 

Como eu disse, é um assunto pesado, mas necessário. Se você ainda não teve aquela conversa com seu filho, essa é a hora. E não esqueça, estamos juntas. Aqui, ninguém larga a mão de ninguém. 

Tatiana Amaral para a coluna Maternidade