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A negligência no direito básico à saúde das mulheres é criminosa

Atualizado: 5 de set de 2022

É aterrador para nós, mulheres, encarar a realidade que nos assola simplesmente por sermos mulheres. De fato, somos as mais vulneráveis em quase todos os espaços; até mesmo quando envolve o acesso aos nossos direitos básicos, como o direito à saúde. A negligência nas nossas dores não é algo novo. Historicamente, ela sempre existiu. Ocorre que, após o advento das redes sociais, alguns casos representativos de tal realidade têm ganhado maior repercussão pública, o que acaba visibilizando nossas questões.

Eu me refiro, é claro, a dois fatos muito simbólicos, ocorridos recentemente e que nos obrigam a repensar o tratamento dispensado às mulheres no campo médico. O primeiro trouxe a questão da cantora Anitta, que demorou quase 9 anos para ser diagnosticada com endometriose e poder tratar a doença, para ter mais qualidade de vida.

A respeito da endometriose, o que se sabe sobre sua causa é que ela constitui, ainda, um dos grandes desafios da ciência. No entanto, é certo que ela tem afetado cerca de 176 milhões mulheres, uma em cada dez.

"Por que as doenças ligadas aos corpos das mulheres são tão negligenciadas na medicina?"

Seus maiores sintomas envolvem dores intensas, inclusive durante a relação sexual, e acredita-se, ainda, que ela pode ser definida como uma doença crônica, afetando principalmente mulheres em idade reprodutiva.

Mas o caso da cantora suscita uma indagação muito necessária: afinal, por que as doenças ligadas aos corpos das mulheres são tão negligenciadas na medicina? Em seu relato pessoal, Anitta revela o preconceito das pessoas quando ela desabafou nas redes sociais sobre seu sofrimento e falou abertamente de suas queixas, enquanto mulher, no afã de ser acolhida, jamais estigmatizada, como acabou acontecendo.

O segundo caso, por sua vez, chocou o país: um médico anestesista estuprou uma mulher logo após a anestesia para uma cesárea, no próprio centro cirúrgico.

"É preciso entender que a violência obstétrica, os danos estéticos, os estupros e toda a sorte de abusos sexuais escancaram que somos, nós, as mulheres, o grupo mais vulnerável a essas violências."

Veja que se tratava de um profissional médico; que deveria assisti-la, jamais violá-la. Cenas essas só vieram à tona porque foram registradas e vieram a público, tornando possível a efetivação do flagrante.

Como se vê, esses dois casos apontam e alertam para a necessidade premente de refletirmos de maneira mais aprofundada a respeito de políticas públicas direcionadas à proteção de nossos direitos, sobretudo ao direito básico das mulheres à saúde, seja ela física, mental ou psíquica.

É preciso entender que a violência obstétrica, os danos estéticos, os estupros e toda a sorte de abusos sexuais escancaram que somos, nós, as mulheres, o grupo mais vulnerável a essas violências. É importante enfatizar que a violência é sempre algo repugnante, em qualquer espaço. Mas, quando ela ocorre no campo médico, em um momento em que estamos extremante vulneráveis e necessitamos de atendimento e da operacionalização de nossas dores, dos nossos sintomas, ela passa a ser mais repugnante ainda, porque leva a um dano existencial, quase sempre incalculável, de consequências infindáveis.

A negação de nossos direitos básicos, como é o caso do direito à saúde, é, acima de tudo, mais uma questão de gênero na sociedade brasileira.

O descaso que ocorre contra nós não é por acaso, mas decorrência da violência estrutural contra as mulheres e da constante e reiterada violação de nossos Direitos Humanos.

"É aterrador para nós, mulheres, encarar a realidade que nos assola simplesmente por sermos mulheres. De fato, somos as mais vulneráveis em quase todos os espaços; até mesmo quando envolve o acesso aos nossos direitos básicos, como o direito à saúde."

Penso que é necessário registrar e manifestar a nossa indignação diante das constantes violências de gênero que ocorrem na sociedade, por entendermos que nossa dignidade passa a ser violada também diante da ameaça que paira de sermos violentadas também nesses espaços em que deveríamos ser cuidadas, respeitadas, jamais molestadas.

Contudo, percebe-se em muitos relatos e, falando em primeira pessoa, na prática da minha advocacia, compartilho a seguinte experiência: naqueles momentos nos quais estamos mais vulneráveis, é quando a dominação masculina mais acontece, geralmente em seu estado puro.

Ela sempre anda à espreita de nós, mulheres, e o abismo que ela abre nas nossas vidas e em nossos corpos é algo que não se pode dizer com certeza se conseguiremos transpor. Estamos sempre vulneráveis a ela, nas sociedades machistas, excludentes e violentas.

Todo esse estado de coisas nos avisa que, de fato, em nenhum lugar estaremos seguras sendo mulheres. Por isso, a luta pela dignidade humana das mulheres é uma luta constante e de toda a sociedade, de todas as instituições e de todos os profissionais que se prezem, em todos os espaços, sejam eles públicos ou privados.

Matéria de Katarina Brazil para a coluna direitos das mulheres

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