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Briga de Marido e Mulher

Atualizado: 6 de set de 2022

“Em Briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Será isso verdade?

Durante anos vigorou em nosso país como infração de menor potencial ofensivo a violência praticada contra a mulher e a principal consequência disso era que o processo e julgamento dessas infrações penais, cujas penas máximas não ultrapassavam dois anos, tramitavam perante os Juizados Especiais Criminais e, em caso de condenação, acabava resultando no pagamento de cestas básicas por parte dos autores, uma modalidade de pena restritiva de direitos de caráter pecuniário

Em vista disso havia uma sensação de impunidade que imperava no meio social, pois se de um lado os autores sentiam-se encorajados a reiterarem a conduta criminosa, confiantes na praticamente certa impunidade, do outro as vítimas ficavam desestimuladas, e com toda razão, a denunciarem seus agressores, devido a insignificante consequência prática que poderia advir ao final do processo judicial. Antigamente as penas cominadas para o delito de lesão corporal eram leves e permanecia exclusivamente nas mãos da vítima a decisão de processar ou não seu agressor, além de poder interromper o curso natural da investigação já iniciada em sede policial, caso desejasse, através do instituto da retratação da representação criminal.  Algo muito comum já que as mulheres, de uma forma geral, tendem a criar uma legítima expectativa de que seus parceiros poderão mudar e voltar a ter um comportamento socialmente aceitável após uma conduta inicialmente reprovável.

Assim a ausência de denúncia por parte da vítima ou o resultado final insatisfatório do processo judicial, quando existente, baseado na legislação em vigor a época, propiciava a perpetuação do ciclo da violência, usado para identificar padrões abusivos em uma relação afetiva, na medida em que os fatos acabavam sendo praticados numa intensidade cada vez maior e com um intervalo de tempo cada vez menor.

“As “colheres” podem salvar vidas em situação de risco.”

Vale ressaltar que o ciclo da violência, compõe-se de três fases, construção da tensão, explosão dessa tensão e lua de mel.  Na primeira fase ocorrem os ataques verbais e as crises de ciúmes.  Na segunda os ataques físicos mais graves, ao passo que a terceira é marcada pelo arrependimento e compaixão do agressor, sendo comuns pedidos de desculpas na tentativa de conseguir a todo custo o perdão da vítima.

Não obstante o registro policial de um crime de injúria ou ameaça, por exemplo, não havia o fundado temor a uma punição eficiente por parte dos autores que não raras vezes sentiam-se acima do bem e do mal. Registre-se que a legislação até então existente ensejava esse lamentável pensamento, fortalecido ainda mais, a partir de comportamentos passivos e tolerantes de algumas vítimas.

Com isso a evolução para a segunda fase do ciclo da violência era praticamente certa, ou seja, após um simples xingamento entre as partes dificilmente o registro tinha o condão de inibir o avanço para a fase seguinte do ciclo da violência.

Naquele momento podia-se dizer que o ditado popular “Em briga de marido ninguém mete a colher!”, assim como o que diz: “Ruim com ele pior sem ele” ou ainda aquela famosa frase: “Ah! Mas foi só dessa vez”, eram costumeiramente empregados no dia a dia da sociedade e tachados como verdades absolutas. A bem da verdade era que mesmo com registro não havia uma consequência de maior vulto aplicada ao autor, então na maior parte das vezes a vítima preferia sofrer calada, já que mesmo condenado e tendo cumprido a pena, normalmente consistente no pagamento de cestas básicas, logo o autor retornava ao convívio doméstico e com mais raiva, acabava praticando uma infração penal ainda mais grave.

Então, qualquer ajuda de terceiros não produzia o efeito persuasivo desejado já que o poder de denunciar além de se concentrar exclusivamente nas mãos das vítimas, nem sempre era exercido da forma esperada.

Essa situação perdurou durante anos em nosso ordenamento jurídico, mais precisamente até 07/08/2006, data da promulgação da Lei Maria da Penha, considerada como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra a mulher segundo a ONU (Organização das Nações Unidas).

De fato a lei representou um avanço e uma vitoriosa conquista na luta pelos direitos da mulher iniciada através dos movimentos feministas na década de 70 recebendo esse nome em homenagem a uma biofarmacêutica Cearense que transformou a sua dor em luta, sendo o seu caso a gota d’água num oceano de impunidades que imperou durante anos em nosso país. Essa mulher brasileira esperou quase 20 anos para ver o seu marido condenado e preso e mesmo assim a uma mísera pena de dois anos, mesmo sofrendo duas tentativas de feminicídio, chegando a ficar paraplégica após receber um tiro enquanto dormia, sem contar nas sessões de tortura a que era submetida, como choques elétricos, dentre outras.

A demora excessiva no julgamento desse caso repercutiu internacionalmente e o Brasil foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica sendo que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos elencou algumas recomendações ao nosso país, dentre as quais a de elaborar uma legislação mais eficiente no combate à violência contra a mulher e a tutela de seus direitos, o que contribuiu para o surgimento da Lei 11.340/06 conhecida como Lei Maria da Penha.

Dentre as principais inovações trazidas pela Lei em questão, destaco a possibilidade de prisão em flagrante do autor, a proibição das penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, a previsão das chamadas medidas protetivas de urgência, a investigação penal poder ser iniciada mesmo contra a vontade da  vítima, passando a ser de ação penal  pública incondicionada os casos de violência física, que podem se materializar no crime de lesão corporal ou na contravenção penal de vias de fato.

Nesse contexto, afastou-se por completo dos casos de violência doméstica o rito e os institutos despenalizadores da Lei dos Juizados Especiais Criminais, nos termos do artigo 41 da Lei Maria da Penha.

Assim, a violência contra a mulher passou a ser considerada uma grave violação aos direitos humanos de modo que por mais que ela não queira proceder, sua vontade é dispensada, na medida em que a persecução penal poderá se desenvolver de ofício como forma de protegê-la, desde que o fato chegue ao conhecimento das autoridades competentes, com relação ao crime de lesão corporal e a contravenção penal de vias de fato, especificamente.  Assim nenhuma mulher agredida fisicamente poderá mais escolher entre processar ou não seu agressor.  Tal decisão não mais lhe pertence.

Entenda-se como mulher a esposa, a companheira, a namorada ou qualquer outra que esteja numa relação íntima de afeto com o agressor, sendo que a proteção se estende mesmo após o término do relacionamento. Aqui nunca é demais lembrar que a violência pode alcançar toda e qualquer mulher, independentemente de sua cor, religião, escolaridade, idade, classe social ou orientação sexual.

A lei Maria da Penha além de conceituar a violência doméstica e familiar contra a mulher como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, define os cinco tipos de violência, quais sejam, a física, a psicológica, a moral, a sexual e a patrimonial.

Hoje, além da própria vítima, qualquer pessoa, seja um parente, amigo, vizinho, colega de trabalho ou mesmo um desconhecido pode se valer dos canais disponíveis para levar o fato ao conhecimento dos órgãos competentes, tais como Disque Denúncia, Ligue 180, Delegacias de  Polícia, Ministério Público, Cartórios, sendo importante ressaltar que só a partir do registro o ciclo da violência é rompido definitivamente e a mulher passa a usufruir de toda a rede de apoio existente atualmente a sua disposição.

Entretanto, há vários fatores que dificultam a vítima a procurar a ajuda necessária pessoalmente, como o medo, a vergonha, a dependência emocional ou financeira de seus parceiros, a pressão da família etc. Então, muitas vezes a ajuda de terceiros é crucial no enfrentamento a violência e na ajuda a algumas mulheres que se encontram aprisionadas no ciclo da violência.

Sensível a tais dificuldades encontradas por algumas mulheres para procurarem ajuda foram criadas algumas campanhas nacionais, como a que incentiva a sinalização na palma da mão com um X em vermelho representando um pedido de socorro de uma mulher que está em situação de vulnerabilidade.

“Nenhuma mulher agredida fisicamente poderá mais escolher entre processar ou não seu agressor.  Tal decisão não mais lhe pertence. “

Assim se por algum tempo a vontade delas prevalecia e não raras vezes protegiam os agressores, ocultando a violência sofrida e evitando a denúncia, iludidas de que eles iriam mudar, afinal são seus maridos, pai dos seus filhos e já foram em algum momento remoto seus príncipes encantados, o que acabava afastando qualquer ajuda de terceiros, sendo muito comum a vítima reatar o relacionamento, sobretudo, iludida pela falaciosa fase da lua de mel, não aquela romântica que acontece logo após o casamento quando os noivos se transformam em marido e mulher e que, diga-se de passagem, poderia durar eternamente, mas sim a mais trágica que corresponde a última fase do ciclo da violência.

Hoje prevalece a ideia de que a mulher deve buscar ajuda o quanto antes e, sem dúvida a Lei Maria da Penha representou um marco que deve ser comemorado pela sociedade brasileira, contribuindo para salvaguarda da vida e da dignidade de muitas mulheres, sendo pioneira e impulsionando a elaboração de outras legislações cada vez mais eficientes no enfrentamento à violência contra as mulheres e protetoras dos seus direitos, conquistados a duras penas ao longo de séculos.

Percebam que a luta está só começando e apesar dos avanços alcançados algumas relações abusivas e desequilibradas onde a mulher se encontra em situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência ainda sobrevivem invisíveis aos nossos olhos. Assim, a denúncia por parte de terceiros não se traduz em invasão à intimidade dos cônjuges, mas pelo contrário, contribui para uma sociedade mais justa, equilibrada e protetora dos direitos da mulher.  Crimes e contravenções cometidos no âmbito familiar não podem mais ser considerados como meros desentendimentos entre o casal.

“Assim, a denúncia por parte de terceiros não se traduz em invasão à intimidade dos cônjuges, mas pelo contrário, contribui para uma sociedade mais justa, equilibrada e protetora dos direitos da mulher.”

Permanecer numa posição equidistante ou indiferente é ignorar esta triste realidade. Sair da esfera de conforto representa sim um verdadeiro ato de amor ao próximo.

Depois de ler esse texto você ainda tem dúvida de que não só pode como deve meter a colher? Vamos abraçar essa campanha, vestir a camisa e espalhar colheres por aí pessoal!  Lembrem-se de que as “colheres” podem salvar vidas em situação de risco.

Matéria de Maria Madalena para a coluna Direito das Mulheres

Maria Madalena, é delegada de Polícia Civil há mais de 13 anos. Coordena ao todo 7 delegacias no Estado do Rio de Janeiro, incluindo a Delegacia do Complexo do Jacarezinho. Ela convive diariamente com a violência extrema contra a vida e a dignidade da mulher, absorvendo grande conhecimento de causa para dividir na coluna os fatos e as possíveis soluções deste tipo de conflito que, infelizmente, está mais presente do que nunca na vida das brasileiras.

Formada em Direito pela UniverCidade, e pós-graduada em segurança pública e cidadania, Maria Madalena se divide entre os cuidados com sua família e o trabalho. Ela é casada e mãe de dois filhos: Lucca Vicenzo e Luigi Matteo.

Maria Madalena não possui perfil em redes sociais para preservar a sua segurança e da sua família.