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Os lembretes diários de não pertencimento

Atualizado: 19 de dez de 2022

Eu sempre digo que o processo do amor próprio não é linear e tampouco tem começo, meio e fim. Falando a verdade, trata-se de um processo diário e eterno, com altos e baixos. Nunca conheci alguém que tivesse começado a se amar e tivesse conseguido manter isso de forma regular. E se alguém te disser o contrário, desconfie. Somos seres humanos, afinal de contas.

Eu considero que tenho uma boa relação com o meu corpo gordo. Depois de muitos anos me matando para mudá-lo, acredito que cheguei em um lugar, finalmente, confortável. Tenho o privilégio de poder compartilhar um pouco desse sentimento com meus leitores e é muito gratificante trazer algum tipo de conforto através das palavras.

E mesmo inspirando outras tantas pessoas por aí, eu ainda tenho momentos de dúvida e de extrema vulnerabilidade.

Os lembretes de não pertencimento são diários e, mesmo trabalhando internamente minha boa relação com o meu corpo, as vezes me pego sendo sabotada por tais lembretes. Esse ano têm sido muitos. O primeiro veio logo no início de 2022.

Meu apartamento tinha um jogo de 4 cadeiras daquelas usadas na cozinha do BBB22.

São cadeiras bonitas e as tenho visto cada vez mais por aí. Acontece que o que essas cadeiras têm de bonitas, têm de frágeis. As fábricas garantem que elas sustentam até 110kg e esse foi o primeiro lembrete de que as coisas não são pensadas para mim ou pessoas como eu.

“Eu estou sempre tentando ter uma visão positiva de mim e do meu corpo. Sempre agradecendo a ele por ser meu fiel companheiro e me ajudar a realizar todos os meus sonhos. Mas esses lembretes, esses malditos lembretes de não pertencimento, vez ou outra sabotam minha boa relação comigo mesma.”

O segundo lembrete aconteceu cerca de um mês e meio depois e também têm a ver com cadeiras. Mais especificamente: poltronas. Precisei de uma consulta de emergência na ginecologista e a sala de espera estava vazia, mas todas as poltronas possuíam braços que deixavam o assento particularmente estreito para o meu quadril. Passei cerca de 30 minutos aguardando e a cada segundo de desconforto eu desejava levantar e ir embora.

O terceiro lembrete veio poucos dias atrás, quando meu sofá, que já fazia uns barulhos esquisitos quando meu marido e eu nos sentávamos, simplesmente afundou. Bateu aquele desespero interno, pois ainda nem acabei de pagar pelas cadeiras de ferro (responsáveis por substituir as antigas que quebraram) e já vou precisar comprar um sofá novo?

Fizemos uma pesquisa rápida e o sofá do nosso apartamento é indicado para até duas pessoas de 90KG.

Essas situações me recordaram de outras igualmente doloridas, como a vez em que fiquei presa na catraca de um ônibus e parei de andar de transporte público, desde então. Ou a vez em que estava em um voo internacional e simplesmente não coube no assento apertado. Teve também a vez em que fui barrada em um brinquedo no parque aquático da Universal, pois o limite de peso do mesmo era de 90KG (e há, literalmente, uma balança para pesar as pessoas antes de elas descerem pelo toboágua).

Eu estou sempre tentando ter uma visão positiva de mim e do meu corpo. Sempre agradecendo a ele por ser meu fiel companheiro e me ajudar a realizar todos os meus sonhos. Mas esses lembretes, esses malditos lembretes de não pertencimento, vez ou outra sabotam minha boa relação comigo mesma e me fazem questionar se eu não deveria, de fato, mudar para caber nos padrões, pois aparentemente os padrões não estão dispostos a se expandir para acolher a pluralidade.

Eu gostaria de terminar esse texto em específico com uma mensagem positiva sobre resiliência e luta, mas ao menos dessa vez vou me permitir um descanso para dizer apenas que estou cansada.

Thati Machado para a coluna Gorda, sim!

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