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Matéria de capa: Fernanda Machado




A escritora que é destaque na Revista com sua coluna “Páginas do meu diário”

Por Cris Coelho


Fernanda Machado. O que falar dela?

A primeira coisa que me passou pela cabeça foi: como vou conseguir descrever em palavras a magnitude dessa mulher? Como vou conseguir passar com exatidão a Fernanda que aprendi a conhecer, a admirar e a amar?


Escrevo há muitos anos, mas escrever sobre ela é um desafio enorme para mim. Por quê? Porque ela me toca de uma forma muito profunda; ela me desafia a ir mais longe e me diz com sua voz doce que, sim, é possível chegar aonde eu quiser. Ela me ensinou muito mais que qualquer professora. Ela me mostrou que só é necessário dedicação e esforço e que: o resto? O resto é só um detalhe.


Até conhecer a Fernanda, eu não sabia que pessoas com síndrome de Down podiam ser tão inteligentes, tão brilhantes. Foi depois que comecei a trabalhar com ela que entendi de verdade o quanto o mundo é injusto, com seus milhões de códigos e barreiras pré-concebidas sobre quem é capaz e quem não é. Aprofundei-me no conceito de exclusão quando escutei dela o quanto havia sofrido para conseguir pertencer. Sofri junto em cada lágrima de redenção que via escorrer pelo seu rosto lindo. Silenciei um pouco da minha dor ao ver aquela menina tão competente, tão culta, tão gigante ser diminuída.


“A Fernanda é uma mulher com a capacidade de entregar amor além do lugar comum.”
Porque a Fernanda é muito maior que a “deficiência” que ela carrega. A Fernanda tem milhões de qualidades, algumas características que falam um pouco do conjunto fantástico que a compõem.

Dentre essas características, está a síndrome, que é apenas um detalhe na construção do seu eu.


A Fernanda é uma mulher com a capacidade de entregar amor além do lugar comum. Ela me estendeu sua empatia quando avisei que passava por um drama pessoal; me enviou uma mensagem com todo o sentimento que habita seu ser e me beijou a face quando eu mais precisava.

“Ela é assim: determinada, séria para assuntos de trabalho, doce nas amizades, atenciosa aos prazos e compromissos, e talentosa quando se senta para fazer o que mais ama, que é escrever.”

Ela é assim: determinada, séria para assuntos de trabalho, doce nas amizades, atenciosa aos prazos e compromissos, e talentosa quando se senta para fazer o que mais ama, que é escrever. Aliás, o que ela mais ama, segundo suas próprias palavras, é sua família; e escrever é a forma como expressa sua arte.


E por falar em escrita, foi através dela que eu conheci a Fernanda, há cerca de oito meses. Eu estava procurando escritoras emblemáticas para compor o hall de colunistas da Revista Maria Scarlet; queria juntar um time de mulheres que soubessem escrever com a alma e que, ao mesmo tempo, ocupassem um importante lugar de fala na sociedade. Queria dar voz a essas mulheres, trazendo à luz do público o talento escondido por trás de todo preconceito social existente.


Ao colocar no Google a palavra “escritora”, logo me veio a Fernanda, cujo talento havia sido identificado e premiado no concurso Cromossomo 21, do qual ela foi a vencedora. Encontrei sua rede social e fiz contato com ela. Recebi a resposta logo depois, em um tom um pouco desconfiado, sério, porém muito cordial. Ela me pediu para colocar sua mãe no grupo, para que se sentisse mais à vontade, e eu consenti, claro.


Trocamos uma série de mensagens até chegarmos a uma proposta de coluna adequada aos interesses de escrita da Fernanda e estabelecemos um prazo quinzenal para o envio dos textos. No decorrer da nossa relação profissional, eu percebi o quanto a Fernanda era comprometida com a Revista; ela cumpriu à risca todos os prazos estabelecidos, entregando no prazo 100% dos textos que havia se comprometido a escrever.


Para a composição desta matéria, eu e a Editora-chefe da Revista, Alexia Road, tivemos o privilégio de passar 2 horas e meia com a Fernanda e sua mãe, absorvendo um pouco da vida da Fernanda e de sua trajetória nesses quase 33 anos de existência.


A história dela começou desde antes do seu nascimento, quando sua mãe, Miriam, e seu pai, Jairo, decidiram trazê-la ao mundo. Eles fizeram curso de pais de primeira viagem, prepararam o enxoval com todo o carinho e seguiram à risca todo o protocolo para garantirem as melhores condições para seu bebê que estava a caminho.


Foi após o nascimento que Miriam soube que as rotas cuidadosamente demarcadas por ela, uma analista de sistemas, e por seu marido, um engenheiro acostumado a calcular tudo, haviam sido desviadas de um rumo dito seguro. O médico os alertou que a Fernanda possivelmente teria uma síndrome, a síndrome de Down.


O mundo da Miriam caiu naquele instante. Um frio congelante abraçou seu corpo, e o medo do que sua filha enfrentaria durante sua jornada a impediu de festejar sua chegada naquele momento.


E em 17 de agosto de 1989, nascia a Fernanda. Ela veio ao mundo com um sorriso no rosto e um olhar doce, que envolveu toda a família logo no primeiro instante de sua vida. Mas, à medida que a filha crescia, Miriam se sentia estranhamente “culpada” pelos pensamentos negativos que tinha sobre seu futuro não promissor. Estamos falando do final da década de 1980, quando tudo o que envolvia o aspecto de inclusão de pessoas com síndrome de Down era ainda mais difícil.


Folheando álbuns de recordações recheados de alegrias, Fernanda confidenciou a sua mãe o quanto ter síndrome de Down, às vezes, a entristecia e fazia chorar. A mãe com carinho lhe explicou que entendia, que já havia sentido o mesmo quando ela tinha nascido, um misto de sensações: felizes pelo seu nascimento, pois ela era muito desejada por todos, mas também alguns assustados e tristes.


Fernanda, confusa, perguntou: “Mas se eu era tão desejada por todos vocês, por que choraram?”. E Miriam explicou: “Tínhamos medo de não saber lidar com as situações e de que você não fosse feliz”.


Esse foi um dos momentos em que ela entendeu que Fernanda fazia parte de um plano maior de Deus, a quem sempre foi devota: ela havia vindo, dentre todas as outras razões que elaboram a sua existência, com uma síndrome para ajudar seus pais a se “desdobrarem”; duas pessoas essencialmente técnicas em suas formações foram obrigadas a encontrar alternativas e novas formas de enxergar o mundo. O “quadrado” em que viviam se transformou em um mosaico de possibilidades, enraizando um conceito de que a filha deles teria todas as chances de sobreviver aos preconceitos pré-estabelecidos na sociedade.


Eles resolveram seguir adiante e tirar de letra qualquer desafio imposto pela condição da Fernanda; eles entenderam que precisavam quebras paradigmas e ajudar na humanização do processo nos locais onde a filha exercesse qualquer atividade.


Para isso, fizeram estimulação precoce na Fernanda e, com 5 meses, buscaram uma creche para a filha. Já no início, a primeira creche a rejeitou, demonstrando que realmente não seria uma tarefa fácil a busca por lugares que acolhessem sua filha. A segunda creche que buscaram a aceitou com braços abertos, e ela seguiu seu caminho com toda a estimulação possível.

“Fernanda é uma escritora consagrada. Venceu o concurso Cromossomo 21 e é conhecida pelos vários personagens mágicos em seu vasto universo fictício, no livro Taragô.”

Até os 7 ou 8 anos, Fernanda viajou muito. Isso fez com que sua perspectiva de mundo se ampliasse e sua vontade de explorar outros horizontes ficasse fortalecida. Sua primeira infância foi boa, confortável e segura; ela tinha duas grandes amigas no prédio em que vivia, a Laura e a Júlia, e estava sempre passeando, rindo e se divertindo.

O caminho foi longo e dolorido.


Fernanda teve um suporte enorme da sua família, que foi essencial para seu desenvolvimento psíquico-pedagógico, porém os desafios no campo social dificultaram muito o aprendizado da Fernanda, fazendo com que ela se sentisse eternamente excluída nos ambientes escolares.


Foi quando Fernanda ingressou no ensino fundamental e seguiu até a oitava série do fundamental. Naquele momento, esse e a maioria dos colégios no Brasil não estavam preparados para receber uma aluna com qualquer característica que a diferenciasse do padrão de alunos que compunham seu público majoritário.


As escolas tinham essa deficiência crítica e, ao se depararem com qualquer novo desafio, o caminho mais fácil era o da exclusão, tanto por professores quanto por alunos.

Fernanda passou por duas escolas. Na primeira, ela percebeu logo de cara o preconceito das crianças que estudavam com ela, que diziam: “Eu sei porque a Fernanda demora para copiar o que está na lousa, porque ela tem síndrome de Down!”.


Já na segunda, os professores acabavam por colocá-la em grupos separados para algumas atividades com a justificativa de que estariam preocupados com o ritmo da turma, e que a Fernanda e outras três crianças com outros problemas de aprendizagem atrapalhavam o andamento natural da aprendizagem da turma. Além de justificarem que seria melhor para o aprendizado da Fernanda que ela ficasse separada, ela se sentia muito excluída, afinal, o recado era claro: “Em alguns lugares, você pode estar presente, em outros, não”.


Certa vez, a turma inteira foi convidada a fazer um trabalho sobre um livro do Érico Veríssimo. A turma inteira montou um livro com textos/história de cada aluno, e esse livro da turma foi levado à feira do livro de Porto Alegre para os alunos o autografarem e entregarem às famílias. A Fernanda não foi convidada para fazer um texto para o livro, mas foi convidada para assistir à cerimônia de autógrafos na feira. Então ela voltou à sala de aula junto a todos os colegas, mesmo a professora de português estando muito receosa. Ela achava que seria muito difícil a Fernanda participar da próxima atividade, que era de ler os dois volumes do livro O tempo e o vento: o continente, de Érico Verissimo.


A Fernanda amou ter lido os livros e ficava deslumbrada com as diversas histórias.

O trabalho consistia em ler os livros, e, nos prazos estipulados pela professora, a turma precisava contar e discutir sobre os capítulos determinados por ela. Quando chegavam as datas das discussões, quase só a Fernanda falava em sala de aula. Em muitas ocasiões, só ela tinha lido os capítulos, e os colegas muitas vezes na hora do recreio, antes da aula, pediam para ela contar a eles sobre o livro. No final do trabalho, na avaliação, a professora avaliou que a Fernanda superou todas as expectativas e foi a aluna que mais se envolveu com a atividade. Ela disse que ficou muito surpresa e que lamentava que a Fernanda não estivesse com a turma desde o início.


Nas férias da oitava série, ela não tinha amigos e, para fugir da solidão cotidiana, ela começou a escrever. Sentia-se bem no universo da escrita, onde podia ser ela mesma e onde conseguia alcançar o lugar do pertencimento.


Muito abalada com o aspecto social, Fernanda conversou com seus pais e solicitou uma mudança de escola, para terminar seus estudos em um outro lugar. Seu pedido foi atendido e ela trocou de escola, onde realizou todo o ensino médio e enfim foi aceita socialmente. No primeiro ano do ensino médio, ela se envolveu nos projetos de artes, literatura e teatro, e, ao ter a oportunidade de lançar uma autobiografia, descobriu, quase sem querer, o que havia sido destinada a fazer nesta vida: escrever.

“E assim seguiu Fernanda, buscando realizar tudo que quisesse e destruindo todas as barreiras que surgiam em seu caminho…”

Em 2003 Fernanda resolveu ingressar em um grupo de escoteiros e descobriu um universo de novas possibilidades para sua vida! Ela percebeu o quanto era destemida, e seu lado aventureiro a levou para um lugar muito confortável, que eram as inúmeras viagens que fazia ao lado dos pais, na infância. Desde então, não parou mais de explorar a natureza e todos os esportes radicais possíveis: rafting, tirolesa, rapel, entre outros.


Sua paixão por aventura foi tanta que, em 2005, prestes a completar 15 anos, Fernanda decidiu embarcar sozinha rumo à sua maior aventura: ela foi para Jamboree, um encontro sul-americano de escoteiros, que seria realizado na Argentina. E sua mãe, mais uma vez, a “empurrou” para a vida, possibilitando que sua filha realizasse mais esse sonho e conquistasse aquilo que veio buscar nessa vida.


E assim seguiu Fernanda, buscando realizar tudo que quisesse e destruindo todas as barreiras que surgiam em seu caminho. Ela entrou para a faculdade de design gráfico e optou por ir sozinha para o campus. Continuou firme no propósito de entregar o melhor de si à sua profissão, às suas vontades, ao seu destino.


Em 2008 Fernanda fez um curso de mergulho amador em águas abertas e, em 2010, ela se formou com louvor na Universidade Luterana do Brasil. Suas notas foram todas acima da média, e seu projeto de conclusão de curso, um guia de diagramação para livro acessível, virou a base para a adaptação de livros para pessoas com deficiência. Com ele, Fernanda atingiu seu propósito de ajudar a sociedade com deficiência intelectual e baixa visão.

Foi nessa mesma época que Fernanda entrou para o grupo de jovens da paróquia Menino Deus de Porto Alegre e encontrou um grupo que conseguiu, finalmente, enxergar a maravilha que era tê-la como amiga.


Fernanda fez “amigos de verdade” pela primeira vez, desde suas amigas da infância, e se despediu carinhosamente da “Fofinha”, sua melhor amiga de quatro patas, que pôde ir embora tranquila, já que Fernanda havia encontrado seu caminho.


Fernanda, ter você ao meu lado nesta caminhada é um presente! Poder contar com seu talento, seu comprometimento e sua luz faz com que a revista Maria Scarlet seja um sucesso absoluto! E esse sucesso tem vários nomes, dentre eles um muito especial: o seu.


Senhoras e senhores,

com vocês, a nossa estrela: Fernanda Machado.


MS – Fernanda, você é escritora, colunista da revista Maria Scarlet, designer gráfico, vencedora do prêmio Cromossomo 21 de Literatura e Inovação, estreou nas telas do cinema no documentário Expedição 21 e também é ativista pela inclusão de pessoas com SD. Tem algo que você ainda sonha em fazer ou ser para juntar a esses títulos tão especiais?


em, sou escritora porque já escrevi um livro, mas um só, e agora alguns textos para a revista Maria Scarlet. Mas o meu grande sonho é escrever vários livros e ser uma escritora bem conhecida. Às vezes também penso que gostaria de atuar em algum filme, fazer propagandas ou posar para fotos como modelo. 


MS – O que a motivou a escrever Taragô, seu livro que a levou a ganhar o prêmio Cromossomo 21 de Literatura e Inovação?


A minha motivação veio de algumas inquietações, pois muitas vezes me achei fora do padrão e às vezes ficava pensando: “A que mundo realmente pertenço?”.

Às vezes me acho uma pessoa com dificuldades e outras vezes me acho uma pessoa com muitas possibilidades. Às vezes gosto de pertencer a este mundo, outras vezes gostaria de pertencer a um mundo diferente. Acho que tudo isso tem a ver com o fato de eu ter síndrome de Down.

Com essas inquietações, muita criatividade e fantasia, comecei a escrever sobre a possibilidade da existência de outros mundos. E assim surgiu Taragô – A origem de Nândhya Luz, que é a história de uma jovem que vive entre dois planetas e busca conhecer sua verdadeira história.


MS – Você acha que a sociedade ainda está mais preocupada com as dificuldades de pessoas com síndrome de Down do que com suas verdadeiras capacidades intelectuais e sociais?


Infelizmente, a sociedade ainda olha para as pessoas com síndrome de Down achando que elas não são capazes. O capacitismo ainda é muito forte na nossa sociedade, é lamentável.

Por outro lado, vejo uma mudança positiva acontecendo nesse sentido, como: empresas abrindo oportunidades e acreditando na capacidade das pessoas com síndrome de Down, como é o caso da revista Maria Scarlet; jovens com síndrome de Down se graduando nas universidades; e muitas pessoas com síndrome de Down estão conseguindo mostrar suas potencialidades, principalmente através das redes sociais.


MS – Através da coluna “Páginas do meu diário”, podemos ver que você é apaixonada por lugares históricos e que já esteve em Estrada Real Caminho do Ouro. Quais outros destinos você sonha em conhecer um dia?


No Brasil, quero conhecer a Bahia, que foi o ponto de chegada dos portugueses aqui no Brasil. Em especial, a parte histórica de Salvador. Gostaria de retornar para alguns lugares da Europa, pois quando fui lá eu era muito pequena e quase não lembro. Na Europa, eu gostaria de retornar à Alemanha, de onde veio a família de minha mãe e por onde começa a minha árvore genealógica materna. Também gostaria de conhecer mais sobre a escola de Bauhaus e a escola Ulm, por onde começou toda a história do Design Gráfico.

Mas também tem outros lugares que gostaria de conhecer por outros motivos não históricos, como: os estúdios do Harry Potter, na Inglaterra (gosto muito do universo do Harry Potter); a Noruega, com seus castelos e, com sorte, até o fenômeno da aurora boreal; a Índia, com a sua cultura e religiosidade tão diferentes. Nossa, muitos lugares!

São lugares que trariam muita inspiração para eu escrever.


MS – Uma lição valiosa que gostaria de compartilhar com as leitoras da Maria Scarlet?


O fato de sermos mulheres não significa sermos frágeis e dependentes, e sim que somos sensíveis e fortes. Nunca desistam dos seus sonhos e objetivos, pois são eles que nos impulsionam a buscar a nossa melhor versão.


Fernanda Machado é colunista de Páginas do Meu Diário para a Revista MS

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