Pessoas queridas,
Tenho percebido um insistente policiamento e tribunal nas redes sociais afirmando categoricamente que a monogamia não é apenas um modelo de relacionamento, mas um sistema de controle e exploração estatal, capitalista, colonial e neoliberal sobre nossos corpos e desejos. A hierarquização dos afetos seria um vício, os acordos, limites e vetos, um câncer.
Essa visão tem o seu valor, chamando atenção para desigualdades e tem sido agregada nas premissas da chamada “não monogamia política”, uma corrente que ganhou visibilidade no Brasil recentemente, agora no início dos anos 2010, inspirada em figuras como Brigitte Vasallo, escritora espanhola que apresenta um discurso com linguagem belicosa e confrontacional. Ela descreve a monogamia como uma "prisão" e uma "ferramenta de opressão", e critica fortemente qualquer forma de hierarquia nos relacionamentos. O seu livro “Desafio Poliamoroso” faz uso de metáforas de batalha e resistência, posicionando a não monogamia política como uma luta contra um sistema opressor. Para os seus seguidores, a verdadeira não monogamia deve ser desprovida de qualquer vestígio de controle ou posse sobre o outro, o que inclui a rejeição de vetos e acordos que limitem a liberdade de cada parceiro.
Até aí tudo bem, porque as pessoas têm o direito de se organizar a favor de abordagens com as quais mais se identificam, vivendo como acreditam. O que me incomoda é que, ao ganhar espaço no Brasil, a “não monogamia política” tem se proliferado na discussão sobre o que seria “verdadeira não monogamia”, tentando tomar para si o termo “não monogamia” exclusivamente para quem se alinha com os seus princípios. Para quem escolhe o swing, relacionamento aberto ou poliamor, tem se manifestado de forma polarizada, enraivecida, vexatória, zombando de todas essas outras formas de amar.
A monogamia, no entendimento de muitas áreas do conhecimento como primatologia, biologia, antropologia e psicologia, é definida como a prática ou estado de ter um único parceiro sexual ou romântico durante um período de tempo. Entre seres humanos, historicamente a monogamia significava casar-se virgem e permanecer com o mesmo cônjuge até a morte. Nem preciso sublinhar que a exigência de virgindade no casamento era aplicada às mulheres, refletindo normas sociais que associavam a pureza e a honra femininas à virgindade, enquanto a sexualidade masculina era tolerada, machismo estrutural gritando.
Hoje em dia, quando falamos em monogamia, estamos nos referindo a ter um único parceiro por vez (o que sabemos ser um ideal dificilmente alcançado e promessas constantemente corrompidas) mesmo quando a prática de exclusividade emocional e sexual seja um princípio. Já quando falamos em relações não monogâmicas consensuais, estamos nos referindo à possibilidade (e não à necessidade) das pessoas terem múltiplos parceiros com o consentimento e conhecimento de todos os envolvidos.
Qual seria a polêmica então? Militantes argumentam que todas as formas de “não monogamia consensual” (como swing, relacionamento aberto e as principais vertentes do poliamor) seriam na verdade “monogamias gourmet”, tendo em vista que regras, acordos, vetos, hierarquias e ciúmes fazem parte dessas formas de amar: marcas capitalistas.
Mas vamos devagar: no reino animal há espécies que são monogâmicas sociais, o que significa que formam pares para cuidar da prole, mas podem ter relações sexuais com outros parceiros (90% das aves, 3% dos mamíferos e os primatas gibões). Outras são monogâmicas genéticas, formando pares exclusivos tanto social quanto sexualmente (como lobos e roedores). Existem também muitas espécies que são claramente não monogâmicas, com múltiplos parceiros ao longo de suas vidas (como os bonobos, leões, elefantes marinhos).
Essas estratégias não são influenciadas por estruturas capitalistas, coloniais ou neoliberais, mas sim por necessidades biológicas e evolutivas. Dizer que a monogamia social encontrada no reino animal seria fruto do capitalismo é uma simplificação notável. Sendo assim, amores, o termo monogamia pode até ser sequestrado pela corrente da não monogamia política, porque sempre teremos correntes sectárias, por mais bem intencionadas que sejam, exigindo exclusividade e fé nas suas verdades - mas cabe a nós buscarmos lentes ampliadas de análise.
Quando em dúvida, lembre que as não monogamias consensuais (consensual non monogamy, em inglês) têm sido estudadas por diversas áreas do conhecimento há muitos anos e sempre significaram a não exclusividade afetiva ou sexual com o consentimento de todos os envolvidos. Essas práticas são reconhecidas e validadas por uma longa trajetória de pesquisa acadêmica e experiências pessoais. Estudos longitudinais têm explorado essas formas de relacionamento, elas já existem.
As dinâmicas propostas pela não monogamia política estão focadas na construção de um futuro diferente e imaginário. Ainda em semente - para um tom oposto do adotado por Vasallo, sugiro que acompanhem a beleza do pensamento da psicóloga e ativista guarani Geni Núnez e a sua proposta de reflorestamento do imaginário e descolonização dos afetos - visam a criação de relações desprovidas de hierarquias e vetos, com a intenção de redefinir e reinventar as dinâmicas afetivas e sexuais. Essas ideias podem ser poéticas inspiradoras, mas é importante lembrar que elas estão em estágio de desenvolvimento e experimentação, pelo menos em sociedades industrializadas com a nossa. Não temos ainda estudos sobre como na prática seriam esses relacionamentos. Por isso, eu diria, um pouco de parcimônia seria gentil e adequado.
Se você se identifica com a monogamia ou com as não monogamias consensuais tradicionais, saiba que há uma riqueza de estudos, recursos e redes de apoio disponíveis para você. Não se sinta diminuído ou menos válido por suas escolhas. Muito menos por priorizar parcerias ou hierarquizar afetos. Sobre esse assunto inclusive tenho novidades. Mês que vem vou focar apenas nos aspectos da neurociência que indicam ser previsível sentir paixão por alguns e amizade por outros, falaremos dos hormônios do amor! Somos indivíduos complexos influenciados por fatores biológicos, psicológicos, histórico-sócio-político e culturais.
A pluralidade das experiências humanas é vasta e todas as formas de amor consensuais e respeitosas merecem o seu lugar.
Ilana Eleá para a coluna Não Monogamias
Encontre-a no Instagram: @ilanaelea