Contei a vocês no post do mês passado sobre meu primeiro verão na América. Acho que pela primeira vez na vida contei quantas semanas tem um verão – são 14 semanas, pois começamos com o feriado de 30 ou 31 de maio e vamos até 3 ou 4 de setembro. Aprendi a contar as semanas, as horas do dia, pois sonhava com a hora de tomar banho depois de um dia quente de verão e cair na cama para descansar, e com as horas de sono até o despertador me acordar para o próximo dia.
Nesse verão, nessa casa encantadora de frente para o mar, na qual somente eu morava lá durante a semana, eu me dediquei e procurei aprender tudo o que uma housekeeper (empregada doméstica) fazia e podia melhorar. Lembrando que eu saí do Brasil com um cargo de supervisão numa multinacional, mas faria mais dinheiro na América do que no Brasil.
Enfim, a maioria das famílias que têm casa nos Hamptons passa o verão em suas casas ou vem somente no final de semana. Nessa casa em que eu estava trabalhando, eles vinham somente aos finais de semana. Quando a família ia embora no domingo, eu e o staff saíamos e íamos até o bairro vizinho para um hambúrguer e uma cerveja, era o nosso pequeno prazer da semana. Depois que eu voltava, era banho e cama, porque sabia que na segunda-feira tudo começaria novamente.
Limpar, passar, dobrar e organizar eram parte do meu escopo de trabalho, e eu me esmerava nisso. Ao pôr os sapatos usados do final de semana de volta no closet, eu limpava a sola dos sapatos.
Fazia com bom gosto, afinal, eu ganhava por dia, e não importava a tarefa a ser cumprida, o importante era cumprir a carga horária.
Fazia o que precisava e, ao final do dia, eu me dava aos pequenos prazeres de me sentar de frente pro mar, ir pra academia, caminhar na vizinhança, mas tudo sozinha, sem trocar uma palavra ou falar com alguém. Na verdade, como eu não sabia o inglês, até me escondia ao ver que alguém pudesse puxar conversa comigo. No começo, ler rótulos de latas, receitas em inglês me fascinava. Trocar um “hi” ou um “good morning” no supermercado já me deixava feliz.
Como vim para a América para um trabalho de verão – que tinha hora para começar, mas não tinha para terminar –, eu não podia me dedicar ao inglês.
Na época, não tínhamos celular, e eu comprei o Motorola mais moderno da época, mas não tinha computador. Fui comprar o meu computador meses depois. Enfim, o que quero contar aqui é um “causo” que aconteceu comigo nessa casa nesse verão.
Num final de semana, a família chegou e trouxe um cachorro de pequeno porte – que não fez muita festa comigo. Eu entendi, porque, como nunca tive nenhum pet, não sabia como brincar ou agradar. A patroa foi clara ao dizer para alimentar o cachorro e deixá-lo sair para fazer o número um no belíssimo quintal – e o número dois eu teria que catar. Colocaram a cama do cachorro perto do meu quarto, eu e ele dividiríamos o andar de baixo da casa. O cachorro ia passar a semana comigo, afinal, ele também precisava de férias no verão.
A rotina era a mesma. Despertador tocava, eu me trocava e colocava o uniforme, passava pelo cachorro e ele me acompanhava para o andar de cima. Ao chegar à cozinha, eu abria a porta, ele saía e fazia o número um, eu esperava ele fazer o número dois e depois nós entrávamos. Eu colocava a ração e preparava meu café. Assim que acabava, já tinha coisas que teria de fazer.
"No começo, ler rótulos de latas, receitas em inglês me fascinava. Trocar um “hi” ou um “good morning” no supermercado já me deixava feliz."
Eu passava várias vezes pelo cachorro dorminhoco na cozinha e sempre abria a porta para ver se ele queria fazer (número um). Na quarta-feira daquela semana, tudo começou do mesmo jeito.
Despertador tocou, coloquei meu uniforme e passei pelo cachorro dorminhoco. Fui para a cozinha, tomei meu café, coloquei a comida dele e resolvi chamá-lo para subir e vir comer.
Chamei, gritei, berrei e o cachorro não se mexia. Imediatamente liguei para minha chefe brasileira e disse que o cachorro não se mexia e que eu achava que ele estava morto. Claro que ela me perguntou como eu havia matado o cachorro; que aquele cachorro era do dono da casa, que havia morrido anos antes, e que valia uma fortuna. Aqui nos Hamptons, tudo vale uma fortuna.
Eu me desesperei e disse que não havia feito nada. Disse que o cachorro era dorminhoco e que eu o respeitava.
Ele não brincava comigo e eu não brincava com ele. Ela me pediu que aguardasse, que ela ia passar pela [CL1] e que juntas tomaríamos as providências, mas que eu teria de me explicar. Quase morri nesse meio-tempo. Como assim, ter de me explicar?
"Eu me desesperei e disse que não havia feito nada. Disse que o cachorro era dorminhoco e que eu o respeitava."
Eu fazia e refazia o dia anterior na minha cabeça e não encontrava nada de errado. O cachorro comeu, bebeu, fez número um várias vezes, fez número dois uma vez e dormiu, só isso. Passei uma manhã “do cão” esperando a chefe chegar, morrendo de medo, e não sabia como ia me explicar.
Por volta das onze horas, ela chegou e me encheu de perguntas, então desceu para pegar o cachorro, pois eu disse que não tocaria no animal morto. Ao tocar no cachorro, ele acordou, e eu gritei da cozinha: “Ele ressuscitou!”. O cachorro subiu os degraus acompanhando a minha chefe e foi direto para fora da casa, e foi quando a minha chefe me perguntou: “Você sabia que esse cachorro é surdo e cego?”.
Conclusão: o cachorro me seguia até a cozinha talvez porque ele acordava com os meus passos. Naquele dia, em específico, ele não acordou. Eu o chamava e ele não ouvia, portanto, não estava morto nem tampouco tinha ressuscitado. Eu não sabia se ria ou se xingava por ninguém ter me contado sobre a cegueira e surdez do cachorro. Foi então, nesse dia, que comecei a coletar meus “causos dos Hamptons”. Esse foi só o primeiro.
Quer saber mais? Conto o próximo “causo” no mês que vem. Até lá.
Matéria de Ana Anselmo para a coluna minha vida em NY
Encontre-a no Instagram: @anaanselmo_babyplanner