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Líder de saia

Atualizado: 29 de dez de 2022

Líder de saia (de saião, de calça, como preferir)

Não posso evitar o trocadilho com meu sobrenome, afinal, desde os tempos da escola eu ouço: “Érica Saia Grande!” “Por que a Érica Saião está de minissaia?”

Pois bem, falar em liderança feminina também envolve falar da saia. Ou do direito de não usar saia. Parece superficial para uma coluna que se propõe a abordar temas tão relevantes como liderança e equidade de gênero? Mas falar da saia também é falar de equidade.

Pra começar, usar saia requer habilidade. Uma habilidade adicional para nós, mulheres. A gente aprende desde cedo que precisa ter total controle dos movimentos para não “pagar calcinha” no futuro, naquela reunião importante. A elegância tem um preço – e no caso das mulheres, o preço é alto (que novidade!).

A gente já cresce com essa ditadura de “sentar como uma mocinha”. Nada de sentar à vontade, de pernas abertas, se jogar no chão, abaixar e levantar de qualquer maneira. Se a saia for rodada então, bate um vento e já estamos também com os braços limitados: eles precisam segurar a saia. A menina cresce desafiada a dar seu jeito enrolando a saia no banco da bicicleta ou dando um nó entre as pernas para jogar bola de gude com os amigos. Ter o direito à mesma diversão dos meninos não é tão simples. Seria diferente no trabalho?

Imaginem que só em 1997 o Supremo Tribunal Federal eliminou a exigência de usar vestido ou saia para o acesso de mulheres ao plenário, de forma similar à medida pouco antes adotada no Senado, liberando o acesso ao plenário e tribuna de honra de mulheres vestindo calça comprida. Você pode pensar: como assim?! E até ironizar: “No meu país? Só se for na França!”, como dizia o personagem da Escolinha do Professor Raymundo. Mas sabe o que é curioso? Na França, só em 2013 foi publicada lei para permitir às mulheres andar por Paris usando calças compridas, anulando regulamento em vigor há mais de 200 anos. É claro que a lei já não tinha efeito prático na atualidade, mas merece destaque a declaração da ministra francesa dos Direitos das Mulheres, Najat Vallaud-Belkacem, sobre a sua anulação formal, que o regulamento estaria em contradição com a igualdade de direitos entre homens e mulheres garantida pela Constituição Francesa e pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Sim, exigir que as mulheres usem saia é contrariar nossa igualdade de direitos. Nós conquistamos o direito de usar calças. E é importante lembrar que no começo eram as calças dos maridos, pais e irmãos, para ocupar a lacuna da força de trabalho que tinha ido para a guerra. As mulheres usavam efetivamente “roupa de homem” para trabalhar, para ter a flexibilidade que o trabalho industrial exigia. Começou como “roupa de homem” para fazer o que seria “trabalho de homem”. E isso foi somente há algumas décadas! Hoje a calça é peça essencial no vestuário feminino, mas só na década de 70 começou a fabricação de calças femininas em escala comercial (segundo a wikipédia).

Usar calças simboliza, portanto, mais do que a vestimenta em si. É um marco de uma transformação social, de inclusão, de equidade. Pena que a ocupação das mulheres do trabalho não tenha sido na mesma velocidade que a calça ocupou o seu vestuário!

E mesmo o direito de usar calça, que é trivial hoje em dia (pelo menos na cultura ocidental), em algumas situações ainda exige que a gente se imponha para fazer valer, ainda que de forma velada e inserida em protocolos sociais.

Quer um exemplo? Basta pesquisar no google o traje feminino para um evento cujo dress code é “passeio completo”. Vestidos, saias e saltos vão estampar sua tela. Agora, imagina aderir a este dress code para um evento em que você precisa pegar uma ponte aérea, sem pit stop no hotel, e ainda, na sequência, seguir para uma reunião de negócios na planta operacional de uma empresa. Esta foi uma programação recente que precisei administrar – que tenho certeza que não é incomum para a maioria das mulheres no mundo corporativo -, mas tenho que confessar que fiquei alguns dias processando esta composição. E nesta hora, foi inevitável não pensar no clichê “como as coisas são mais simples para os homens”. A grande exigência que distinguia o look da reunião de trabalho e o evento com dress code formal era somente um acessório: a gravata.

Se eu ia sentar à mesa, certamente meus predicados iam além da vestimenta. Assim, decidi por priorizar a conveniência (sem perder a elegância, é claro).

“Liderar nossa vida é distinguir o que é importante e estabelecer nossas prioridades. Por isso, em alguns momentos, o que é possível e conveniente deve tomar a frente do recomendado.”

O ponto aqui é que nós já enfrentamos muitos dilemas e desafios para nos limitarmos a pequenas convenções sociais. Temos questões muito mais profundas, como maternidade e carreira, qualidade de vida (porque nós, mulheres, precisamos trabalhar mais e estudar mais para ter acesso às mesmas oportunidades e ainda assumimos mais responsabilidades domésticas – as pesquisas mostram isso), vieses inconscientes, crenças limitantes, enfim, tantos desafios que precisamos vencer (alguns em nós mesmas) para tomar nosso assento à mesa.

Se nós não soubermos eliminar da nossa pauta pessoal o que não é essencial (ou dedicar o menor tempo possível), não poderemos dar o tratamento ideal às questões mais relevantes que estão no nosso entorno.

Isso vale para tudo na nossa vida – e a vida é nosso primeiro (e principal) exercício de liderança. Liderar nossa vida é distinguir o que é importante e estabelecer nossas prioridades. Por isso, em alguns momentos, o que é possível e conveniente deve tomar a frente do recomendado, sim, porque a recomendação é generalista e nem sempre aplicável à nossa realidade. Basta fazer o bom uso da nossa liberdade de escolha (mesmo as mais simples, como usar saia ou não) e assumir. No final das contas, é a atitude que nos diferencia e ressignifica os padrões de adequação.

Ah! E se você ficou curiosa sobre como eu resolvi o “dilema” do dress code, aí vai: nem saia, nem calça, viva o macacão! (Sem a piadinha de “Érica Macacão”, afinal, aquele público não mandaria uma dessas! rs)

Érica Saião para a coluna Carreira

Encontre-a no Instagram @erica_saiao