A fonte
- flaviasantosalbuquerque
- 18 de mar.
- 4 min de leitura
O acontecimento narrado a seguir ocorreu em novembro passado, mais precisamente no dia três de novembro por volta das onze horas da noite.
Ouçam.
Era segunda-feira e havia chovido o dia inteiro e Lygia seguia sem rumo, confusa. Nada parecia fazer sentido. Seus músculos do corpo inteiro estavam pesados e doíam. Sua cabeça estava oca. Sentia-se cansada, até que resolveu sentar. “Como continuar? Como prosseguir?” – perguntava-se.
Já era a segunda noite que iria passar na rua, sozinha, sentada no banco da Praça São Miguel. Ficava imaginando a possibilidade de atentar contra a própria vida e vinha junto uma vontade de chorar. Ao mesmo tempo, o choro estava preso por causa de uma sensação esquisita na região do esôfago que impedia a passagem, não sabia bem do que, da vida, talvez. Também sentia sono, tinha dormido muito pouco na noite passada. Chegava à sua mente flashes de imagens do rosto do filho e a angústia aumentava ainda mais. A respiração ficava curta, os ombros se contraíam e a sensação de pânico invadia todo seu ser, anestesiando-o. Não tinha mais forças para chorar. Só havia tristeza. Uma tristeza inesgotável, como um poço sem fundo, capaz de afogá-la. Não havia mais expectativas. Sentia-se completamente desamparada.
Nesse momento, um grito de criança explodiu de dentro de uma das casas ao redor da praça. Suspirou. Algo passou a chamar a sua atenção, distraindo-a do turbilhão de pensamentos. Decidiu ficar olhando e reparou que o objeto tinha um reflexo furta-cor. Com certa surpresa, Lygia sentiu-se atraída pelo “brinquedo”. O seu olhar ia se convertendo. Admirava-se com certa curiosidade ao ver aqueles tons de cores se alternando à medida que movia o rosto. Foi aí que de repente, de maneira inusitada, em forma de magia, viu surgir a presença de um feixe espesso e luminoso através do objeto, deixando-a completamente capturada pela manifestação:
— Nossa, como é bonito! – exclamou.
Lygia ficou embevecida e observava com atenção, admirando a beleza do fenômeno. O feixe ia desde o objeto, que se encontrava ali no chão, até a direção do céu numa altura em que ela não enxergava o final. Era uma fantástica coluna formada por um conjunto de raios de luz que se propagavam no infinito. Ela ficou pasma. Pode ser que o leitor se pergunte: “Estaria ela tendo algum tipo de alucinação?”. Mas, na verdade não, parecia mesmo estar diante de algo semelhante a um Aleph. Contudo, este não tinha a propriedade de conter todos os lugares do orbe. Não era isso. Era sim inebriante por si mesmo, com um brilho assustador. Entendeu que ali estaria a fonte de todas as coisas existentes na face da Terra ou talvez mesmo do universo inteiro, desde todos os seres vivos até todos os objetos inanimados que são compartilhados na realidade material. Até que veio um pensamento. E... quem sabe ali, logo ali não reencontraria seu filho muito amado?
Olhando para a fonte com esse pensamento, viu num lampejo o exato momento em que o rapaz tinha partido após ter sofrido o acidente. Sentiu um desespero e seu corpo começou a tremer por causa do calafrio. Como era difícil entrar em contato com tais imagens. Moto, caminhão, rosto, sangue... não, não, não podia ser! Havia de ter algum meio disso ser desfeito! – suplicava a si mesma. Seu filho não podia estar morto! Foi então que se levantou e seguiu caminhando de forma lenta e compassada na direção da fonte. Era como se sentisse atraída pela luminosidade e energia daquilo que emanava à sua frente.
Aos poucos, foi reconhecendo um holograma se formar no meio do feixe luminoso. Seu coração começou a disparar como um bumbo sendo tocado em seu peito. Sentiu-se ofegante, mas ao mesmo tempo não tinha como recuar. Estava de alguma forma presa, paralisada.
E via, como numa espécie de filme super-8, uma criança. Esta tinha caído e estava se levantando. Esforçava-se para subir de novo na bicicleta e tornou a se equilibrar no veículo de duas rodas que já não mais tinham as pequenas rodinhas que ajudavam no equilíbrio. Apesar de trêmula e insegura, a criança seguiu pedalando mais uma vez até voltar a cair novamente.
Na verdade, agora ela admitia, a criança era ela mesma, Lygia... Lygia quando criança aprendendo a andar de bicicleta. E permanecendo vidrada na imagem, percebeu ainda que havia mais alguém. Quem seria? Por alguns instantes, ela procurou distinguir. Hum peraí... Com algum esforço, querido leitor, pelo que ela conseguiu reconhecer, era seu pai, seu próprio pai olhando e rindo com orgulho pra ela, acenando com um gesto para que ela prosseguisse com o seu intento, infelizmente dias antes dele vir a falecer de pneumonia.
A partir daí, passou a perceber e a sentir com todo seu ser uma potência descomunal fluindo pelo seu corpo. Ficou ligeiramente tonta e, como que embriagada, caiu desmaiada com as pernas muito alvas aparentes mostradas pela saia desalinhada, estava muito magra (estaria doente?) e a raiz dos cabelos já revelando a cor prata.
Uma gota de água, depois outra e outra... aos poucos, Lygia foi sentindo pingos frios do chuvisco tocando parte do seu braço direito que vinham da janela aberta. Foi despertando e procurando lembrar onde estaria. Viu que estava no seu quarto. Ficou confusa, afinal até onde lembrava, tinha estado vagando pela praça que fica próxima a sua casa. “O que será que houve? O que aconteceu?” – questionou ela, em voz alta, de si para si. Vocês, teriam alguma ideia, alguma possível explicação?
Em seguida, ouviu um barulho que vinha da cozinha. Ficou em silêncio para ouvir melhor. Era um barulho de panelas de metal se chocando. Alguém estaria cozinhando? Que estranho! - pensou. Somente quem morava com ela era o seu único filho, muito amado, que...
— Manhêêê! Cadê o azeite?
Isabella Dias para a coluna Contos Literários
Encontre-a no Instagram: @cuidadoterapeutico