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“É da sua natureza”

— Por que a presença de algumas pessoas pode prejudicar toda uma família? Sabe, eu estava ouvindo uma história num programa de rádio outro dia. A mulher vivia atrapalhando a vida do marido. Você acredita? Isso me dá tanta raiva, tanta raiva que eu nem consigo dormir! Tive que parar de ouvir rádio à noite. Quer mais um pedacinho de bolo?


Minha tia era desse jeito, coitada. Signo de escorpião, sua natureza era a de picar. Picar e envenenar. Maldita hora em que aceitei o convite para entrar naquele covil. Argh! Dona Isaura, minha mãe, tinha falecido, e eu não tive outra alternativa a não ser ir morar com a tia Ottilie, a prima distante da mamãe. Lembro do dia em que cheguei. Devia ter por volta dos 13 anos, usava óculos e era estrábica. Estava com um vestido azul-claro e babado branco. Ela me levou até o jardim, nos fundos da casa, onde ficava a piscina. Como se mostrava doce e atenciosa! Mal sabia eu que...


Suas escolhas, sua vida, tudo era perfeito e harmonioso. Em compensação sempre encontrava uma “falha” nos seus interlocutores e expressava isso da forma mais natural possível. Como se estivesse numa conversa de amenidades. No subtexto lia-se: “Como você é ignorante”, “Como você é desinformado”, "Como você é ingênua”, “Como você é medíocre e cafona”. Tóxica. Mas ela... bom, ela era extremamente prendada. Tinha tido a melhor educação que os pais poderiam dar a uma filha para ser a esposa exemplar de um general do exército.


— Essa aí tem cara de pobre!


Às vezes, soltava esse tipo de pérola vendo a foto de uma jovem. A frase era enigmática. Seria inveja? Não há mais como saber. Atualmente, andava esquecida de tudo, igualzinha à mãe. Volta e meia estava fora do ar.


Seu maior orgulho era Vitor Hugo, seu filho primogênito. Era médico, cirurgião de cabeça e pescoço. Falava sobre como ele era ocupado com os vários plantões que fazia nos hospitais da cidade. Quase não tinha tempo para ela. Pobrezinha, como sofria pela ausência do filho. Quando cheguei, Manuela, a do meio, já tinha ido servir na Cruz Vermelha. Queria ajudar as pessoas. E, infelizmente, Juliana já estava em sua peregrinação pelas muitas casas de reabilitação para dependentes químicos.


— Sofre dos nervos – dizia a tia e mudava logo de assunto.


Organizava os jantares mais pomposos do seu círculo de convivência. Ficava toda envaidecida toda vez que elogiavam os seus dotes: “Nossa, que pudim perfeito”, “Que maravilha de porcelana, Ottilie. Onde você comprou? “, “Que casa linda”, “Como é espaçosa e bem decorada”, “Sua pele está um primor”, “Ninguém diz a sua idade”. Como ela adorava ouvir essas frases! Eram como sons suaves e delicados de um arpeggio em tom menor. Talvez já pressentisse o som do paraíso. 


Sim, afinal classificava as pessoas em dois grupos: boas e más. Só acreditava na bondade sem mistura. E estava mais que claro, já que todos os sinais demonstravam o quão boa ela era. Pensava assim. Mal sabia o sabor de sua perfídia. A dama altiva do retrato da sala seria a Rainha de Copas de Alice? “Cortem as cabeças!” Parecia ouvir exatamente isso quando ela sentia raiva do mundo.


Até que um dia, já vestida para ir à festa na casa de uma das meninas do colégio e encontrar o Tavinho, passava eu o lápis preto nos olhos. 


— Onde você pensa que vai?

Comecei a tremer. Um fervor me subiu ao rosto, e um nó se instalou na garganta.


— Você não vê que isso não vai dar certo? Você é uma mestiça! Eu não vou deixar você estragar a vida desse rapaz. É uma questão moral!


— Mas, tia, a gente se gosta!


— De jeito nenhum. Vá limpar essa cara agora!


Apertei os olhos contra os nós dos dedos. Fui para a cama chorar minha amargura. Impotente. Era o único refúgio que podia encontrar. Não pregaria o olho a noite inteira, relembrando o tom de voz e as falas de tia Ottilie. “Bruxa! Bruxa! Você é uma bruxa”, xingava baixinho entre as lágrimas. Era só o que conseguia fazer, enquanto a megera permanecia fazendo seu tricô, divertindo-se com suas pequeninas perversidades. 


Infelizmente, já não era mais possível restabelecer um estado de convivência harmônica com tia Ottilie. A condição em que cada uma de nós se encontrava era completamente distinta. Ela, uma senhora viúva com a herança de uma bela pensão. Eu, ao contrário, reivindicava o meu direito de descobrir o mundo, de lutar pela minha felicidade. Pois um coração que está em busca intui que algo lhe falta, mas aquele que perde sabe do que lhe foi privado. Com Tavinho, eu havia encontrado, pela primeira vez, alegria e ânsia de viver. Sem ele, sentia um imenso vazio. Contudo, eu também tinha sido picada com o ferrão mais venenoso. 


E foi assim que, em meio ao lusco-fusco, prenunciando a escuridão, a vingança sussurrou-me ao espírito e não tardei para ver na prática o que assistira num filme. Meses depois, tia Ottilie faleceu com uma dose extra de insulina.


Isabella Dias para a coluna Contos Literários

Encontre-a no Instagram:@cuidadoterapeutico


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