Desde o início, eu já partira
- flaviasantosalbuquerque
- 10 de out.
- 3 min de leitura
Já que é preciso começar a contar, inicio dizendo sobre como acho difícil reconstruir os acontecimentos... Há sempre um ponto em que a memória falha, inventa – talvez para proteger, talvez para castigar.
Lembro que acreditava estar voltando para a casa da tia Olga. Ainda era dia, a luz da tarde filtrada pelas folhas e os seixos do chão rangendo sob meus passos, quando subia a ladeira. Mas era engano. Desde o início, eu já havia partido.
De repente, senti o puxão. Firme, rápido, vindo por trás. Ele me segurou pelo cotovelo e sussurrou:
– Você precisa tirar as suas coisas de lá! – disse ele, agora com a mão no meu ombro, falando como se fosse segredo.
Tentei me soltar, correr, fugir. Desejava desaparecer quando, no instante seguinte, tudo escureceu. Já não via mais nada. Sumiram a rua, o sol, a ladeira. Tudo se apagou e só vi o breu...
Ontem eu era criança. Ele, um cidadão exemplar aos olhos de muitos. Mas para mim: era um velho asqueroso cujas carnes putrefatas roçaram as minhas. E a voz… aquela voz decrépita, ressuscitando em eco, ficou se repetindo sem descanso nos meus ouvidos. Palavras repulsivas. “Que você emborque sua fuça contra o sal da terra o mais breve possível!” Era o que eu queria gritar aos quatro ventos, aos fantasmas, aos deuses. Mas não. Eu não podia. Porque o tal homem “exemplar” era o marido da minha tia, minha tia tão amada. E eu, a sobrinha bem-comportada, incapaz de revelar o escândalo necessário sobre as investidas sexuais do velho labrojeiro. Essas ficavam suspensas em silêncio, não por ele, mas por mim. Era imperativo dissimular meus sentimentos. Por dignidade. Por amor a ela.
E ela…
Ela não tinha sagacidade, e talvez nem coragem, para enxergar o que se passava, o que acontecia por trás dos meus olhos, por debaixo dos seus, no meu íntimo esconderijo. Vivíamos como se nada houvesse acontecido. Mas dentro de mim, eu já estava longe. Muito longe.
Ah, Senhor, tenho agulhas na boca.
Como sair dessa situação? Como revelar sem magoar? Como falar sem destruir?
Sim, vou tirar minhas coisas de lá. Mas a verdade é que, do lugar onde estou, já fui embora. Já estou correndo pelos prados, sob o sol. Estou no beijo de língua simbiótico sob a fluidez da água que chega do céu, no mergulho no mar em dia de verão. Estou nos pontos luminosos suspensos, vindos na fresta da cortina, e que chegam de forma sagrada nos abençoando, a mim e Miguel.
Sim, já tive um amor.
Um amor que me fazia perder o fôlego, que secava minha boca, que tremia minhas mãos. Que me perdia do eixo, que me tirava do prumo.
E como era doce o meu amor…
Mais uma vez, as cenas começavam a retornar em fragmentos, com alguma nitidez. Foi quando ouvi uma outra voz.
– Olá, minha filha, o que você anda fazendo por aqui?
– Oi, Madame Clessi, acho que me perdi, onde estamos?
– Esse é o local em que tenho vivido. Você gosta?
– Não sei, Madame Clessi, estou confusa. Tentando fugir daquele velho. Carrego no corpo a suspeita amarga de uma gravidez não nascida do amor, mas sim da violência. Ele pede que eu tire as minhas coisas da casa da tia. O que vou fazer, Madame Clessi? Não tenho para onde ir.
Ela me olhou com olhos profundos, mas como quem abraça.
– Agora você está aqui comigo. Está tudo bem. Fique tranquila.
Senti meu rosto esquentar, meus olhos se encherem d’água. Um aperto no peito.
Era a primeira vez, em muito tempo, que me sentia acolhida.
Mas logo depois… a lembrança.
A lembrança de quando estava no enterro de Madame Clessi.
Isabella Dias para a coluna Contos Literários
Encontre-a no Instagram: @cuidadoterapeutico
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